Brutalidade do sistema prisional e bárbaras humilhações a parentes são denunciadas em Ato Público
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- Gabriel Brito, da Redação
- 28/08/2012
Atualmente a sexta economia mundial, o Brasil também se destaca no ranking internacional de aprisionamentos. São aproximadamente 520 mil pessoas nos cárceres do país, sendo que 40% ainda esperam pela acusação oficial, isto é, poderiam responder seus atuais processos em liberdade.
Dentro deste universo, sabe-se largamente da precariedade das prisões brasileiras, autênticas jaulas superlotadas do que alguns chamam de “descarte social”. Além disso, os corredores de tais locais são permeados por tensas relações entre detentos e oficiais do Estado encarregados de vigiá-los. Somadas às condições subumanas das celas, ocorrem freqüentes denúncias de abusos e violações dos direitos humanos dos presos, em muitos casos tratados como animais pelo Estado supostamente responsável por sua “ressocialização”.
Diante da falta de condições dignas nas celas e do crescimento do encarceramento no país (o número de detentos é 69% superior à capacidade dos recintos), nota-se um crescente desconforto social a respeito da situação, principalmente quando organismos internacionais começam a tomar ciência de que a violência oficial empregada contra a “delinqüência interna” é absolutamente desproporcional.
“Precisamos entender mais Loi Wacquant (sociólogo francês especialista em criminalística) quando ele constata que a diminuição das políticas sociais sempre é seguida de aumento do número de prisões”, afirmou Deivison Mendes Faustino, professor de História e Cultura da África da UFSCAR, em ato de lançamento da revista PUC Viva no último dia 16, no prédio da universidade católica – a nova edição da revista tem como tema exclusivo o “Estado penal brasileiro”.
A análise de Faustino se sustenta no atual momento de crise econômica internacional, quando governos de todo o planeta anunciam seguidos cortes orçamentários nas áreas de interesse social, preteridas por políticas de resgate ao sistema financeiro. Ao lado disso, os sinais de que tal crise realmente assola o Brasil começam a ficar mais claros, bastando conferir as pessimistas previsões de crescimento para 2012.
“Precisamos entender quem ganha e quem perde, quem afinal lucra com isso. Ainda mais em épocas de eleição, com toda a sua espetacularização. Temos uma criminalização da pobreza ou do pobre? A pobreza é intrínseca à riqueza capitalista. De modo que, dentro desse sistema, o atual Estado penal poderia mesmo ser substituído pelo Estado de Direito?”, indaga Faustino, lançando um olhar político na abordagem do crescente número de prisões em nosso país.
Uma urgente revisão geral
Com uma vasta massa que ainda não cabe em nossa atual sociedade de mercado, decerto também por nossas deficiências no campo da educação, a queda do crescimento econômico e, consequentemente, da oferta de empregos sempre cobram uma fatura visível em sociedades menos desenvolvidas, nas quais os direitos essenciais da população ainda não foram assegurados.
“É necessário encarar de outra forma a questão das drogas e o aprisionamento em massa que ela gera. A prisão, de forma alguma, ressocializa alguém, muito pelo contrário, nunca resolveu e sempre criou mais revolta”, pontuou a coordenadora da Pastoral Carcerária da Mulher, Heidi Ann Cerneka, na mesa de debate que mediou o ato.
Heidi destaca a questão, pois já é de amplo conhecimento o fato de que, em países nos quais os governos declararam a chamada “guerra às drogas”, verificaram-se enorme aumento do encarceramento, especialmente de jovens traficantes, e (paradoxalmente ou não) um simétrico crescimento do consumo de variadas substâncias ilícitas por lei.
Assim, gera-se uma percepção social nem sempre verdadeira que, em determinados momentos, assola cidades brasileiras: a de que a criminalidade estaria atingindo índices alarmantes e seria necessário redobrar esforços em seu combate, o que aqui significa o reforço do poder de fogo do braço militar estatal. Em momentos assim, fica ainda mais difícil discutir os direitos dos infratores.
“É muito importante levantarmos bandeiras dos direitos humanos neste momento em que se constroem sensos comuns contra esses mesmos direitos humanos. Na minha vida de promotor penal, que incluía visitas a prisões, os presos nos mostravam bastões da polícia usados para agredi-los nos quais se podia ler ‘direitos humanos’”, alertou Haroldo Caetano da Silva, um dos idealizadores do Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator (Paili), também presente ao ato e, dentre outras histórias, refém da famosa rebelião comandada por Leonardo Pareja no Centro Penitenciário de Goiás, em abril de 1996.
Além de denunciar o alto grau de letalidade do Estado brasileiro na relação com suas camadas mais pobres, o encontro serviu também para denunciar uma especificidade pouco difundida ao público, mas que martiriza semanalmente os familiares dos presos.
“Os presos sofrem uma sobrepena, pois, além da pena que já cumprem, têm de conviver com a humilhação dos parentes. É uma situação comum, mas destaco especialmente a situação de São Paulo”, disse Andreia de Almeida Torres, membro do Conselho Regional de Serviços Social (CRESS).
Torres se refere ao fato, mote principal do ato, de que, em muitas prisões brasileiras, aqueles que visitam seus parentes passam por verdadeira via-crúcis, por vezes extremamente cruel, para alcançarem um momento ao lado de quem os fizeram sair de casa. “Nós passamos por muitas humilhações, pois os parentes que visitam seus filhos, maridos, primos presos também são ‘condenados’ pelos carcereiros e funcionários do presídio. Sofremos muitos abusos, qualquer suspeita que eles alegam já gera uma enorme repressão”, contou Andrea MF, ex-presidiária e membro da Amparar (Associação de Amigos e Familiares de Presos(as)).
Ela ilustrou com um exemplo que, seguido da exibição de um curto vídeo que circula na internet, deixou atônitos e até sem reação uma boa parte dos presentes. Trata-se de procedimento qualificado pelos especialistas como “revista vexatória”. Geralmente, as mulheres são obrigadas a se despir completamente na sala de espera diante de uma carcereira, chegando finalmente a ficar de cócoras, de modo a deixar claro que não portam drogas em seu corpo. Em alguns casos, o(a) oficial não se contenta e leva a pessoa em questão para exames como raio-x em hospitais e prontos-socorros, fazendo o parente perder todo o dia em idas e vindas fajutas.
“Assim, sou vítima de um sistema que não reabilita. Não estou defendendo o preso naquele artigo em que foi condenado, e sim em outros direitos que não devem ser violados por causa disso”, completou Andrea MF. “Por isso, precisamos estar atentos às atuais discussões do novo Código Penal e da Lei de Execução Penal, nesses tempos tão conservadores”, acrescentou Andréia Torres.
Apesar de estarmos habituados às notícias a respeito da eterna “guerra” entre crime, em São Paulo simbolizado pelo PCC, e polícia, como se viu no sangrento bimestre junho/julho de 2012, nem sempre se reportam as mazelas das prisões, menos ainda em relação aos parentes visitantes. Alguns relatos soam inverossímeis, tamanho barbarismo empregado.
“Vemos essa história de cada preso custar 1500 reais por mês ao Estado. Onde está esse dinheiro? Pois o que sabemos é que servem comida podre, até com caramujo, nas refeições dos presos. Já vi parente meu falar que tinha vidro na comida”, denunciou Andrea MF, em referência ao distrito penal da Baixada Santista, onde a relação crime-estado tem resultado em dezenas de mortes nos últimos anos, denunciadas até internacionalmente. “Ninguém sabe como é usado o orçamento dessa área, do sistema prisional”, emendou Torres.
“Tenho cunhado, irmão e primo presos. E para ter comida boa, só se for da família mesmo, pois, como disse a colega, eles dão comida estragada, com qualquer coisa misturada. Eu e minha nora passamos pela mesma humilhação nas revistas, sendo que, em uma dessas revistas, ela perdeu um bebê de quatro meses”, contou Rose, outra parente de prisioneiro presente ao ato, presenciado por algumas caravanas de parentes de detentos da Zona Norte da capital, Baixada Santista, entre outros locais do estado.
“Tenho 40 anos de Brasil e sempre me perguntei o que aconteceu neste país para que o respeito à dignidade humana ficasse abaixo da sola do sapato. E hoje vejo cada vez mais juventude presa. Precisamos multiplicar encontros como o de hoje e informar mais a sociedade sobre essas realidades”, espantou-se irmã Alberta, da Pastoral Carcerária.
No final do encontro, que ressaltou a necessidade de mais mobilização social pela defesa dos direitos dos presos e divulgação de sua destruidora estadia no sistema prisional, vários parentes aproveitaram o momento para divulgar semelhantes casos de abusos de direitos humanos, tanto de presos como de seus visitantes.
Não é simples se deparar diretamente com histórias tão repletas de sofrimento em carne viva, ainda por cima propiciadas pelo ente que deveria garantir dignidade e bem estar a todos. E é relativamente fácil nos apoiarmos em contextos paralelos de prosperidade para esvaziar a consciência de amarguras referentes a uma minoria de “degenerados”. “Tem gente que acha que a prisão ressocializa. Há quem chame o preso de ‘reeduncando’. É muita hipocrisia”, lamenta o promotor Haroldo Caetano.
Gabriel Brito é jornalista do Correio da Cidadania.