Crimes da Saúde Pública
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- Frei Marcos Sassatelli
- 17/01/2013
“Quem deseja a Paz não pode tolerar atentados e crimes contra a vida”
(Bento XVI. Mensagem para o Dia Mundial da Paz 2013, 4)
Entre os muitos que poderiam ser citados, limito-me a dois casos paradigmáticos, amplamente divulgados na mídia: o de dona Jandira Oseas de Barros, de 70 anos, e o do jovem Edson Luis Gomes Leão, de 17 anos. São claramente crimes de omissão de socorro e o Estado deve ser responsabilizado judicialmente por eles.
Vejamos o primeiro caso. Jandira “solicitou uma consulta com um endocrinologista no dia 1º de junho de 2011. Dezoito meses depois, a responsável pela senhora recebeu a notícia de que o atendimento médico estava marcado. No entanto, a consulta já não tem mais serventia. Jandira está com câncer de mama em estado avançado e faz parte do grupo de doentes terminais do Hospital Araújo Jorge. Com apenas 30 quilos, ela vive um dia de cada vez, sem saber quanto tempo seu corpo ainda aguentará. Jandira não pode retirar o tumor porque os médicos acreditam que a mulher não resistirá. Sessões de quimioterapia e de radioterapia também foram descartadas pelos oncologistas e mastologistas, pois a senhora está frágil e sem condições de passar pelo tratamento” (Diário da Manhã, 21/12/12, p. 2).
Hoje, “Jandira convive com um caroço no seio do tamanho de uma laranja. A pele frágil pela idade já não aguenta mais o crescimento do tumor. Mas Jandira, tímida e meiga, tenta esconder a dor de uma das doenças mais cruéis. No entanto, seus olhos e seu corpo debilitado mostram como é difícil depender de um Sistema de Saúde que não consegue atender as necessidades da população” (Ib.).
Trata-se de uma situação de descaso e de total desrespeito do SUS para com as pessoas idosas. Parece que, para o Poder Público, a vida não tem valor nenhum.
Vejam também o desabafo da advogada Ana Cristina Castro, 50 anos, que cuida de Jandira, sua ex-babá: “Quando recebi aquela ligação informando que a consulta tinha sido marcada dezoito meses depois, meu coração se encheu de dor e revolta. Em lágrimas, tive que avisar a moça que Jandira estava apenas esperando a morte chegar. É um absurdo que pessoas humildes tenham que esperar mais de um ano por uma consulta” (Ib.).
Segundo relata Ana Cristina, os médicos pediram que Jandira tomasse uma injeção de Herceptin (medicamento usado também pela presidenta Dilma Rousseff, para tratar o câncer), que, de acordo com o Instituto Nacional de Câncer (Inca), aumenta em 30% os índices de cura em mulheres com câncer. Por ser o custo do medicamento muito alto (R$ 7 mil cada frasco) e não ter condições de pagar, Ana Cristina foi até o Ministério Público Estadual (MPE) pedir que o SUS oferecesse a injeção. Com muita dor no coração, a advogada afirma: “O SUS negou meu pedido e Jandira não pôde tomar essa medicação. Vi que a presidenta tomou e agora está bem. Às vezes fico pensando que tudo poderia ser diferente se ela tivesse tomado essa medicação” (Ib.).
Dizer que somos todos iguais perante a lei é uma mentira de nossa sociedade hipócrita. Ana Cristina – que pagou diversos exames de Jandira – faz mais um desabafo: “A demora para que os resultados ficassem prontos me fez desistir de realizar alguns exames pelo SUS. De forma particular, os exames foram entregues no outro dia. O câncer não espera. A cada segundo ele faz uma parte do corpo de Jandira morrer” (Ib.).
Enfim, a própria reportagem, com realismo e tristeza, constata: “A dificuldade para marcar consultas já virou rotina para alguns pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS)” (Ib.).
Vamos ao segundo caso. Edson Luis, auxiliar de serviços gerais, que sofreu um acidente de moto enquanto ia ao trabalho num restaurante, “corre o risco de perder a visão nos dois olhos caso não passe por uma cirurgia que cure a embolização de uma veia que alimenta os órgãos. A espera já dura 54 dias e o motivo é uma disputa entre Organizações Sociais (OSs) que administram hospitais, em relação a quem seria responsável pelo procedimento. Edson Luis está internado no Hospital de Urgências de Goiânia (Hugo) e faria a cirurgia no Hospital Alberto Rassi - HGG, mas deve passar pelo procedimento no Hospital das Clínicas (HC)” (O Popular, 17/12/2012, p. 3).
Reparem a desculpa para o atraso no atendimento. Enquanto o jovem Edson Luis corre o risco de ficar cego, a Idtech, Organização Social (OS) que administra o HGG, e a Gerir, Organização Social (OS) que administra o Hugo, não entraram em acordo para realizar a cirurgia em parceria.
A mãe do Edson Luis, a dona de casa Maria dos Reis Faria Leão, de 37 anos, totalmente descrente, faz um desabafo: “Eles falavam que faltava material, mas não acredito nisso. Sempre falam que semana que vem vai ter a cirurgia e ela nunca acontece”. Edson Luis – diz ela – “entrou aqui no Hugo aos 16 anos, já fez aniversário e pode ficar sem os dois olhos” (Ib.). Que absurdo! Que irresponsabilidade!
Pergunto: a administração dos hospitais públicos não foi “terceirizada” (leia-se: “privatizada”) para que, sob a direção das chamadas Organizações Sociais (OSs), o atendimento fosse mais rápido e eficiente? Onde está a rapidez e a eficiência? É bom lembrar que, em caso de urgência e emergência, se os hospitais públicos não têm os meios e as condições necessárias para atender o paciente, o Estado é obrigado a interná-lo em hospitais particulares, à custa do próprio Poder Público. Se não o fizer, caracteriza-se a omissão de socorro e o Estado deve responder judicialmente por tudo aquilo que pode acontecer ao paciente.
Os casos de Jandira e Edson Luis – como muitos outros – mostram, de maneira insofismável, que a situação da Saúde Pública é na prática (mesmo que em teoria digam o contrário) a decretação da pena de morte lenta e gradual para os pobres. Só falta publicar a notícia no Diário Oficial do Estado.
Onde estão os movimentos populares, os sindicatos dos trabalhadores e a sociedade organizada para sair às ruas e denunciar essa situação criminosa, defendendo os direitos humanos e exigindo justiça? O que as Igrejas e as comunidades cristãs estão fazendo para mudar essa realidade? De alguma forma, todos(as) somos omissos e nos acostumamos a conviver com a iniquidade institucionalizada, como se fosse uma coisa natural.
A saúde não é um direito de todos(as) e um dever do Estado? Não é uma prioridade absoluta? Não podemos continuar indiferentes e calados diante desse pecado estrutural, que grita a Deus por justiça! Uma outra Saúde Pública é possível! Basta querer!
Frei Marcos Sassatelli, frade dominicano, é doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP).
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Comentários
Minha mãe depois de meses de espera, de idas e vindas de hospitais, de noites de sonos perdidas conseguiu uma cirurgia para tratamento de tireoide no hospital público que seria feita no dia 06/03/2012. Viajou na madrugada de terça-feira(05/03) e conseguiu internamento as 14h. Foi tratada como qualquer paciente pré-cirúrgico. Ficou em soro, jejum, tomou medicações, passou por consulta com anestesista, suspendeu medicações que ela tomava regularmente e ficou na espera. As 9h do dia 06/03 foi orientada a ser arrumar pra cirurgia, tirou roupas intimas e objetos pessoais e permaneceu deitada até as 15h. Quando veio a comunicação de sua alta. Ela não faria mais a cirurgia e deveria voltar pra casa retornando ao hospital no dia 10/03 para marcar uma outra data de cirurgia. A alegação foi a falta de UTI (caso a paciente uma senhora de 60 anos necessitasse). Estou indignada e quero saber a quem recorro para fazer valer os meus direitos. A situação dela se agrava dia após dia e o nódulo da tireoide pode vim a se tornar câncer. O que complicaria demais nossa situação. Ela é hipertensa e diabética. Não fomos avisados da possibilidade de não ser feita a cirurgia. Não dispomos de recursos financeiros. Obrigada desde já.
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