Somos menos um
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- Verena Glass
- 21/01/2013
Existe um tipo de turma que tem estado por aí há um tempo sem tempo, e que tem gravado na retina as histórias da gente que faz história à margem da História. Com máquinas por vezes ultrapassadas, sapatos puídos, camisetas desbotadas e dinheiro pouco - quase nada - nos bolsos, esse grupo não-grupo se tromba nas marchas, manifestações, protestos e encontros país afora, se reconhece, se abraça, e segue em frente no que, para eles, se tornou não um ganha-pão, mas um ganha-vida: fotografar o povo onde o povo luta.
João Zinclar foi assim. Nem lembro mais onde nos conhecemos ou reconhecemos. Nos víamos bastante nas atividades do MST, onde a turma mais se encontrava (eu, café-com-leite, por não ter a vivência e a experiência que eles têm). Anos atrás, foi lá no sertão baiano, em Sobradinho. Eu vinha de uma história de atravessar o Nordeste para reportar os estragos da expansão de cana na vida dos sertanejos; ele, construindo uma de suas obras primas, o registro grandioso do São Francisco, publicado no livro O rio São Francisco e as águas no Sertão. Eram os dias em que o bispo Dom Luís Cappio fazia greve de fome em defesa do rio, e naquela noite marchamos juntos na Romaria das Águas por tantas horas que tivemos tempo de dividir muito do que já sonhamos no pensamento e brigamos com as lentes (eu obviamente mais ouvia do que falava).
Naqueles dias ainda andamos pela região. Fomos no Canal do Salitre, onde o João havia registrado uma das mais bonitas e produtivas ocupações do MST e que, depois do despejo, tinha voltado a morrer. Fomos ao acampamento onde aquelas famílias tinham sido jogadas, e ele me mostrou a desgraça que é a guerra pela água no sertão. Nos despedimos na rodoviária, e cada um pegou seu pinga-pinga rumo ao próximo destino. Éramos amigos.
No aniversário de 25 anos do MST, em Sarandi, RS, nos encontramos de novo. Vários de nós, da turma, estávamos lá. Naquela festa, João recebeu o prêmio de fotógrafo amigo do movimento e acho que foi um dos grandes dias de ser feliz na vida dele. Brindamos com uma cachaça Mangueira, que tinha trazido do Piauí.
E assim foi pelos anos. Precisa de foto de cortador de cana? O João tem. De uma ocupação, de uma greve? Liga pro João. Do São Francisco? Zinclar. No comecinho do ano passado ele me procurou porque queria ir pro Pará, fotografar a luta contra Belo Monte do Movimento Xingu Vivo (com quem tenho estado nos últimos tempos). Não tinha grana, mas foi. Registrou a primeira ocupação do ano e o roubo do cemitério da comunidade de Santo Antonio pelo Consórcio Norte Energia.
No final de 2012, ele me ligou de novo. Queria ir ao Mato Grosso do Sul, de onde eu tinha acabado de voltar, pra registrar a situação dos Guarani Kaiowá. Não deu tempo. Neste sábado, 19, um caminhão que colidiu com o ônibus em que viajava tirou João Zinclar de nós. Bateu uma sensação estranhíssima de incongruência do possível. Como isso pode ser? Tínhamos coisas pra fazer, precisamos dele pra quando precisarmos. Acho que a ficha ainda não caiu direito...
O pesar pela morte do João circulou entre os movimentos sociais neste fim de semana como honraria pesada de respeito. Alguns da turma de fotógrafos nos comunicamos, sem muito saber por onde. Deixar de ter Zinclar para estar junto é uma perda duríssima para o povo que luta. É uma perda irreparável também para o jornalismo que, com e como ele, registra as histórias de um Brasil que muitos querem invisível. Para nós, os amigos, somos menos um.
Verena Glass é jornalista e faz assessoria para movimentos sociais.
Publicado originalmente em Repórter Brasil.