Por que nós temos que ser contra a redução da idade penal
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- Givanildo Manoel
- 16/04/2013
“Ivan Karamazov diz que, acima de tudo o mais, a morte de uma criança lhe dá ganas de devolver ao universo o seu bilhete de entrada. Mas ele não o faz. Ele continua a lutar e a amar; ele continua a continuar”. Marshall Berman
Em 1993, três anos após a aprovação do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990), numa das leis complementares reformistas, pós-Constituição, foi apresentada PEC (Projeto de Lei de Emenda Constitucional), com o sugestivo número 171. Essa PEC foi proposta só três anos depois de aprovado o ECA. A justificativa da PEC: redução da idade para responsabilidade penal. Depois dessa, em quase todos os anos (1995, 96, 97, 99, 2000, 01, 02, 03, 04, 05, 07, 08, 09, 11, 12), foram apresentadas 30 PECs e PLs (Projeto de Lei), em apenas 23 anos de ECA, com igual ou pior teor.
Como a lei (ECA) nunca teve tema tão exaustivamente debatido como o da redução da idade para a responsabilidade penal, infelizmente, como podemos acompanhar mais uma vez, os sucessivos debates nunca foram feitos pra melhorar a lei. Sempre foram no nível da desqualificação, ou seja, por que uma lei, depois de três anos de aprovada, já sofria ataques e desde sempre sofre?
Esse é o elemento fundamental para que a esquerda possa fazer a defesa dos princípios que fizeram gestar o ECA. Aspectos que precisamos compreender.
Até o ECA, a infanto-adolescência filha da classe trabalhadora era tratada como caso de polícia ou de justiça. Havia uma diferenciação clara e uma separação entre como a justiça tratava os filhos da burguesia e os filhos da classe trabalhadora.
Os filhos da burguesia já conceitualmente eram reconhecidos como crianças e adolescentes e qualquer problema legal que tivessem era atendido pela Vara da Família.
Já os filhos da classe trabalhadora eram controlados pelo Juizado de Menores, que, pela sua concepção de quem eram os seus atendidos, conceituou a chamar os filhos dos trabalhadores de “di menor”, categorizando a infância e adolescência em duas: os filhos da burguesia e os filhos dos trabalhadores.
Esses últimos eram perseguidos, as políticas públicas não os alcançavam (aliás, políticas públicas eram para os filhos da burguesia), eram criminalizados, institucionalizados e tinham os seus passos controlados permanentemente pela polícia e os auxiliares dos Juízes de Menores, que eram os famosos Comissários de Menores, que controlavam a vida dos petizes “desajustados” do sistema.
Com a aprovação do ECA, foi rompida essa categorização de infâncias e passou-se a tratar universalmente como crianças quem tem até 12 anos de idade e, como adolescente, quem tem até 18 anos incompletos.
É importante que prestemos atenção que os poucos direitos dos filhos da classe trabalhadora foram conquistados com muita luta – e lentamente. Um deles, por exemplo, foi em relação à proteção contra a exploração no trabalho. No processo de “industrialização” no Brasil, que se deu principalmente pelo setor têxtil, a mão de obra usualmente utilizada era a das crianças e adolescentes, que comumente começavam a trabalhar entre os 8 e 10 anos e encaravam uma carga horária de 14 a 18 horas por dia. Essa foi uma pauta de reivindicação das greves de 1916 a 1921 e, mesmo assim, nunca foram cumpridas.
Para exemplificar com um caso muito debatido hoje, a PEC do trabalho doméstico, em 2011, constatou-se que existem 250 mil crianças e adolescentes exploradas pelo trabalho doméstico (dados do IBGE). Aqui não façamos confusão: atividades domésticas com exploração de trabalho doméstico, confusão que a direita adora criar para desqualificar a denúncia dessa exploração. E sabemos que 95% são meninas e cerca de 75% delas são negras. E esse é somente um pequeno recorte da real situação.
Se esse direito de não ter a força de trabalho explorada, que foi uma conquista da classe no começo do século passado, não é respeitado, é de se imaginar que os outros, que só recentemente foram assegurados pelo ECA, em um momento de retrocesso conservador e que duramente têm sido atacados, dificilmente serão efetivados.
Uma questão para refletirmos: normalmente temos o discurso de que a categoria infância e adolescência é uma categoria burguesa, talhada pela burguesia para inserir esse segmento no mercado consumidor. Essa premissa pode até ser correta, mas, por outro lado, não se pode esquecer que os direitos da infância estão associados diretamente às conquistas dos direitos das mulheres, já que a conquista dos seus direitos impunha uma nova conjuntura. Tal conjuntura colocava em sua agenda políticas públicas como saúde, educação, creche, entre outras, pressionando para que essas tivessem tratamentos adequados, uma vez que o privado passou a ser público, impondo a necessidade de um olhar público e coletivo, diferente do que havia até então.
Esse talvez tenha sido o momento mais importante do reconhecimento da criança e adolescente, visto que precisavam ser reconhecidos por suas especificidades e, ao mesmo tempo, respeitados por seu momento de vida.
Os direitos sociais que incluem a infância, em sua maioria, são conquistas recentes, principalmente no período da constituição, advindas do reconhecimento da fragilidade no cuidado com as meninas e meninos; uma vitória marcante foi considerá-los prioridade absoluta em todo o processo de organização e estruturação da sociedade.
Claro que nessa decisão havia uma lógica reformista, mas, mesmo dentro dessa lógica reformista, os principais beneficiários pela universalização da política pública foram os filhos da classe trabalhadora, que passaram a ter acesso aos serviços públicos.
Também é importante compreender que os ataques aos direitos conquistados vieram dentro do bojo da resistência à garantia de serviços públicos para o povo; portanto, o ECA e os direitos dos meninos e meninas estavam na contramão daquele momento histórico que apresentava diversas contradições em relação à lei, já que o presidente (Fernando Collor), que sancionou o estatuto, era o principal arauto do Estado mínimo e o responsável pela introdução do neoliberalismo no Brasil.
Logo, o ECA foi aprovado pelas mãos erradas e, poder-se-ia dizer, pelos motivos errados, já que era a única iniciativa voltada à infância e adolescência durante o governo Collor e, vale lembrar, nem sua foi. Ao contrário, sofria resistência da sua parte, pois havia sido construído pelos movimentos que atuavam com a pauta da defesa dos direitos humanos das crianças e adolescentes.
Collor tomou a iniciativa de sancionar a lei que estava engavetada devido à proximidade da realização da Cúpula Mundial para a Infância (1990), na qual o Brasil iria sofrer duras críticas que fragilizariam ainda mais a sua débil condição interna. Sua decisão, portanto, não foi por convicção, mas sim pela pressão que sofria naquele momento.
Desse modo, o centro do debate não é a redução da idade para a responsabilidade. Essa é a fumaça que a burguesia joga para esconder o debate real, e que, infelizmente, encontra um enorme espaço na sociedade. Infelizmente, hoje os trabalhadores são vítimas da indústria do consenso, aproveitando-se do baixo nível de consciência de classe, que não se entende como classe em si e, portanto, que adere à cultura burguesa retribuitiva, cujo objetivo é manter o controle sobre os filhos dos trabalhadores.
Um dos exemplos mais visíveis é um dos crimes mais bárbaros e chocantes que aconteceram no último período: o assassinato do índio Galdino, o líder pataxó Galdino Jesus dos Santos, como era conhecido, queimado cruelmente enquanto dormia. Passados exatos 16 anos, se fizermos uma pesquisa despretensiosa, veremos que os envolvidos (alguns adolescentes) estão bem, empregados e paira um silêncio sepulcral da mídia. Por que isso? Porque esses jovens eram filhos da burguesia brasiliense. Como esses, iremos verificar muitos outros, como o mais escandaloso e recente deles, Thor Baptista (filho de Eike Baptista), que atropelou e matou um ciclista, fugiu e a única penalidade que sofreu foi ter retirada a sua carteira de motorista.
A justificativa dos juízes sempre é mais adequada à sua origem social, que os adolescentes burgueses têm famílias estruturadas e os da classe trabalhadora não!
Voltemos então para o cerne do debate: o primeiro é sobre a farsa do aumento da violência, o total dos crimes graves cometidos pelos adolescentes. Nunca chegaram a traço se comparados aos adultos, mas existe toda uma mídia em torno de atos praticados por adolescentes. Desde a década de 90, o jornalista José Arbex, professor da PUC São Paulo, tem denunciado um complô nas redações contra os adolescentes, definindo que, em qualquer ato que os envolva, a pauta tem de aumentar. No jargão do jornalismo, aumentar a pauta é dar mais destaque para essas situações, logo, tal destaque aumenta a sensação de insegurança provocada pelos adolescentes.
Segundo ponto importante: o ECA nunca foi implantado no Brasil, legislação que, efetivada, garantiria políticas preventivas que respondessem às necessidades da infanto-adolescência. Ao contrário, a lei, além de não ser implantada, foi sendo mudada para pior, não cumprindo o seu papel. As vítimas reais foram as crianças e adolescentes. Por exemplo, o Brasil é o 4º país do mundo quando o assunto é violência contra as crianças e adolescentes. Entre 1980 e 2010, aumentou em 346% o número de mortes de crianças e adolescentes, segundo o Mapa da Violência 2012.
Em terceiro, vem a farsa da redução da idade para que um adolescente possa ser criminalizado: segundo o DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional), em 2011, 56% dos encarcerados estavam na faixa de 18 a 29 anos. Na prática, a redução já está em vigor – e nem precisamos aqui debater qual a classe social e a etnia dessa população carcerária. O Brasil é hoje o 4º país que mais encarcera no mundo. São mais de meio milhão de encarcerados.
O que deseja essa redução? Por que isso não é claramente debatido?
Constatado quem são as vítimas desse processo violento de criminalização de todas as ordens, é necessário discutir aquilo que ninguém discute: qual intencionalidade por trás desse debate? Por que é importante não efetivar o ECA ou o que ainda resta dele? Por que é importante encarcerar os filhos dos trabalhadores, cada vez mais cedo? Por que as centenas e milhares de mortes dos filhos da classe trabalhadora não provocam tanta comoção para pedir a prisão dos governantes por não garantirem as condições de dignidade de vida previstas no ECA?
O Estado burguês nunca assumiu o compromisso com os filhos do povo, somente com os da burguesia. Desse modo, a universalização da política não foi uma convicção, mas uma concessão em momento de ascensão da classe trabalhadora, ou seja, não é um projeto da burguesia brasileira e combatê-lo parece-lhe natural. Aqui diria que, se a burguesia tivesse uma insígnia, essa seria a de “nenhum direito a mais!”.
Se não pensarmos esse processo de encarceramento dentro da lógica do capital, sua necessidade de exploração e reprodução, também não entenderemos por que se encarcera em massa. O encarceramento em massa se insere dentro de tal lógica, pois, ao ter um enorme contingente de encarcerados, é possível explorar a sua mão de obra da forma mais precarizada possível, instituindo assim um Estado penal como o dos EUA. Por isso, encarcerar jovens é um objetivo, já que se trata do período da vida mais produtivo do indivíduo. Isso sem contar com a não responsabilidade de cumprir os demais direitos sociais do trabalhador (saúde, educação, moradia etc.).
Hoje, nas grandes e médias cidades do Brasil, as periferias estão sitiadas. A imprensa burguesa não faz nenhuma questão de esconder: apresenta em horário nobre a população periférica, em especial a juventude, sendo achacada e morta pelo aparato de segurança pública do Estado. É visível que se trata de uma propaganda da lógica do encarceramento em massa, visto que a imprensa não pauta a necessidade de resolver os problemas relacionados à forma de coerção, contenção e morte da juventude trabalhadora e nem promove minimamente debates com a mesma proporção que a morte de um filho da pequena burguesia provoca.
Esses são alguns dos argumentos que têm que fortalecer nossa convicção socialista de que a redução da idade (que na prática já ocorre) não resolverá os problemas de segurança pública pelos quais passamos, já que qualquer política de segurança exitosa reforçaria as políticas sociais e não recrudesceria a relação com a juventude. Entretanto, como as políticas sociais alcançariam os filhos do povo, essas não são reforçadas e passamos por um processo de desmonte desastroso.
Outro aspecto importante é que o debate tem sido colocado com muita intensidade pelo PSDB e, em especial (não eximindo a responsabilidade do governo federal petista), pelo governador Geraldo Alckmin. Algo não sem sentido, já que o estado de São Paulo é o maior violador dos direitos humanos das crianças e dos adolescentes e o principal ideólogo dessa política de segurança que massifica e recrudesce a relação com a juventude. Não nos esqueçamos de que há seis meses, na posse de quase 200 delegados de polícia, Alckmin afirmou em discurso que o principal objetivo daqueles recém-empossados deveria ser o recrudescimento contra a juventude. Não esqueçamos que Geraldo Alckmin foi o introdutor da política da tolerância zero, que levou à explosão do sistema penitenciário e possibilitou a criação de diversos grupos criminosos, inclusive no próprio aparato de segurança do Estado.
A reflexão que temos de fazer é: por que não se respeita o mínimo que está previsto na lei, nem mesmo o mínimo de políticas básicas (saúde, educação, assistência, moradia, cultura, esporte e lazer), e se introduz tão terrível mudança na vida dos meninos e meninas filhos dos trabalhadores e trabalhadoras?
Não vou discutir as mudanças que foram introduzidas na lei (ECA), pois precisaria de espaço igual ou maior para tais reflexões, mas é forçoso dizer que rebaixaram a interpretação e a sua força inicial. Reduzir a idade, no entanto, seria a autorização para agravar ainda mais a já agravada e incerta vida dessa juventude.
Nenhum socialista pode ter dúvida de que lado deverá estar no debate, porque somos depositários do legado humanista, sonhamos um dia vir a ser este o projeto vencedor. Projeto que inclui um olhar diferenciado sobre os meninos e meninas, que criará todas as condições para que possam ser atendidos, cuidados e olhados em todas as suas necessidades.
Essa sociedade não permitirá que nós, os adultos, nos confrontemos com a infanto-adolescência ou muito menos nos omitamos das nossas responsabilidades para com os nossos filhos e filhas, que serão os herdeiros e perpetuadores desse legado de liberdade, igualdade e generosidade.
Nós não podemos ter dúvida de colocar em todas as lutas em que estamos inseridos, principalmente nas lutas por direitos sociais, a luta contra a redução da idade penal dos filhos da classe trabalhadora. Não podemos esperar que a burguesia assuma esse papel. Essa tarefa nos pertence, na medida em que serão nossos filhos e filhas que pagarão o preço das consequências do que tem sido provocado pelo capitalismo.
Não à redução da idade para a responsabilidade penal! Sim à saúde, moradia, educação, cultura, lazer e assistência social!
Givanildo Manoel, “Giva”, é militante do Tribunal Popular e do Setorial de Direitos Humanos do PSOL.
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