Grilagem de terras no Barreiro em Belo Horizonte?
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- Gilvander Luís Moreira
- 29/05/2013
“O direito à cidade e a moradia é o fundamento de uma reforma urbana pautada pelos princípios da democracia participativa. É uma tarefa cada vez mais urgente” (SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justiça; Ed. Cortez; 2007).
Três comunidades urbanas no Barreiro, em Belo Horizonte (MG), estão sob a mira de decisões judiciais de reintegração de posse a empresas e empresários e, consequentemente, à violação do direito das 700 famílias que lá estão resistindo e lutando pelo sagrado direito à moradia digna.
São as comunidades: a) Camilo Torres I e II, com 142 famílias, há cinco anos e já com 142 casas de alvenaria, ruas abertas, pracinha, Escola de Alfabetização; b) Irmã Dorothy I e II, com cerca de 200 famílias, há três anos, já com quase 200 moradias de alvenaria; c) Eliana Silva, com 300 famílias, há um ano, já com cerca de 250 casas de alvenaria, creche e saneamento ecológico pelo sistema bason.
Todas as casas de alvenaria estão construídas ou em construção. Há várias casas com duas famílias, reflexo do imenso déficit habitacional em Belo Horizonte. Os terrenos ocupados estavam abandonados. A necessidade impeliu o povo empobrecido a se unir, se organizar e a lutar para se libertar da cruz do aluguel e da humilhação que é sobreviver de favor.
Os juízes das varas cíveis normalmente, salvo raríssimas exceções, concedem liminares de reintegração de posse observando apenas documentos formais e desconsiderando a origem da propriedade, se o requerente tinha anteriormente ou não a posse (fato), a função social da área e os direitos humanos das pessoas envolvidas no conflito social. Os juízes tratam as ocupações como se fossem invasões e pensam que, com polícia e repressão, se resolve problema social.
Assim se posicionando, perpetuam as desigualdades sociais, tentam dar capa de legalidade a propriedades que desrespeitam os principais constitucionais. Felizmente, a Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais e o Ministério Público de Minas entraram com várias Ações Civis Públicas (ACPs) em defesa das 700 famílias ameaçadas de despejo por ordens judiciais de varas cíveis. Vejamos algumas informações que constam nessas ACPs.
Na esteira do “milagre econômico”, no final da década de 60 e início da década de 70 do século passado, fora instituída, em Minas Gerais, em 25/06/1971, por meio da Lei Estadual 5.721/71, a Companhia de Distritos Industriais de Minas Gerais (CDI/MG), empresa pública com função precípua de gerir e fomentar a implementação de áreas industriais no território mineiro.
Na década de 1980, foi criado o Distrito Industrial Sócio-Integrado do Jatobá, no Bairro Jatobá, na região do Barreiro, em Belo Horizonte, para destinar mais de 160 hectares de terra (1.661.224 m²) para a instalação de dezenas de empresas na área. A área fazia parte de uma gleba, ainda maior, a “Fazenda do Barreiro”, que pertencia, até então, ao estado de Minas Gerais, o qual a adquiriu no ano de 1896, visando integrá-la ao território da nova capital Belo Horizonte, inaugurada em 1897. Depois de incorporada ao patrimônio público estadual, esta antiga estância rural passou a se chamar Colônia Vargem Grande, sendo, tempos mais tarde, destinada pelo poder público, em grande parte, para instalação de equipamentos públicos, o que praticamente não se viabilizou.
Em 1992, o estado de Minas Gerais transferiu a área para a CDI/MG, incorporada, desde 2003, pela Companhia de Desenvolvimento do Estado de Minas Gerais – CODEMIG. Mas, desde os idos de 1980, o que se viu foi uma sucessão de alienações bastante suspeitas de terrenos públicos estaduais em favor de particulares, em sua maioria sem procedimento licitatório, avaliação prévia e a preços irrisórios. Em verdade, após a transmissão de referidos lotes para particulares, com o objetivo formal de instalação de indústrias, tais propriedades foram renegociadas perante outras pessoas jurídicas e privadas – geralmente instituições financeiras e empresários dos mais diversos ramos –, quase sempre por quantias muito abaixo do preço de mercado.
Além disso, em geral, toda esta cadeia de alienações imobiliárias tinha como interveniente a CDI/MG (ou sua sucessora, a CODEMIG), de modo que os adquirentes assumiam, no bojo de contratos administrativos, a obrigação de efetivamente instalar os empreendimentos fabris na região, seguindo determinadas condições, com prazos definidos de, em regra, 10, 18, 24, 36 ou 42 meses. Contudo, tais cláusulas contratuais acabaram, no mais das vezes, não cumpridas, confirmando, assim, a condição de grande parte da área como um enorme terreno abandonado e sem qualquer destinação social e/ou econômica há várias décadas. Palco de especulação!
Assim, grande parte dos terrenos acabou servindo unicamente como depósito de lixo, desova de cadáveres, depósito e descarte de veículos desmanchados (ferro-velho), prática de tráfico e consumo de entorpecentes, contribuindo sensivelmente para o aumento da criminalidade, além da degradação ambiental na região, com total conivência dos poderes públicos envolvidos (incluídos aí a prefeitura de Belo Horizonte, o governo de Minas Gerais e a CODEMIG), que nada fizeram ao longo desses tantos anos para evitar a especulação e o uso inadequado do solo urbano e os respectivos danos à sociedade.
Pouquíssimas indústrias estabeleceram-se na região, de modo que o parcelamento da gleba em lotes pelo governo de Minas Gerais, e sua alienação para particulares pela Administração Pública Estadual Indireta, até o momento, serviu, praticamente, apenas para o agravamento da especulação imobiliária na capital. Em suma, mesmo após ultrapassadas mais de três décadas desde a criação do referido Distrito Industrial Sócio Integrado do Jatobá, grande parte da região continua em situação de completo abandono e descaso, sendo certo que o empreendimento não “saiu do papel” e, pior do que isto, está permeado de ilegalidades gravíssimas, como pode-se citar a ausência de licitação, a venda por preço irrisório e o descumprimento de cláusulas contratuais que exigiam a implantação de empreendimentos industriais para gerar emprego na região. O que prosperou foi a especulação e o aumento do déficit habitacional.
O terreno onde está há cinco anos a comunidade Camilo Torres, em 1992, foi transferido pela CDI/MG para a Borvutex Comércio e Indústria Ltda, com suposta área de 12.230 m². Cerca de 9.450 m² de área privada e, aproximadamente, 2.770 m² de área pertencente ao município de Belo Horizonte. A Borvultex assumiu o encargo de ali se construir um empreendimento industrial no prazo de 24 meses, mas a área restou em completo abandono. Em 2004, sem contar com a anuência da CODEMIG, a Borvultex promete vender a Victor Pneus o referido imóvel, que por força do contrato receberia a posse. O valor dessa transação foi de apenas 15 mil reais, quando somente o IPTU da área indicava o valor venal de 250 mil reais. O terreno continuou no mais completo abandono, sem que a CODEMIG fizesse algo para reverter ao patrimônio público o imóvel, considerando o não cumprimento do encargo. O juiz da 10ª Vara Cível de Belo Horizonte não concedeu a liminar de reintegração de posse, mas em Agravo de Instrumento, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais autorizou fosse feita a reintegração.
O terreno onde há três anos se encontra a Comunidade Irmã Dorothy pertencia à CODEMIG. Em 2001, a CDI/MG celebrou contrato com a empresa PARR Participação Ltda, pelo qual o imóvel seria transferido para referida empresa por 121 mil reais, sob a condição de, no prazo de 20 meses, ser realizado no local um empreendimento industrial, gerando empregos na região. Essa cláusula contratual não foi cumprida. Exatos cinco meses após a celebração do referido contrato a empresa PARR Participações Ltda, contando com a anuência da CDI/MG, transferiu o imóvel para o Banco Rural S/A por 600 mil reais – mais do que 500% acima do valor pelo qual o Estado, por meio da CDI, repassou o imóvel ao particular -, como doação em pagamento. Embora assentado em explícita ilegalidade, o Banco Rural S/A celebrou, em 2007, Contrato Particular de Compra e Venda com a empresa Tramm Locação de Equipamentos Ltda e outras pessoas físicas pelo valor de R$ 180.000,00. Três anos se passaram sem que sequer a Escritura de Compra e Venda fosse providenciada. O imóvel, por mais de dez anos, restou em completo abandono. O local servia unicamente para bota-fora de lixo. Eloquente é o fato de o Banco Rural ter recebido o imóvel pelo valor de 600 mil reais e o ter vendido por apenas 180 mil reais. Em fevereiro de 2010, a empresa Tramm e outras pessoas físicas, sem que proprietários fossem do imóvel, celebram Contrato de Promessa de Compra e Venda com ASACORP Empreendimentos e Participações S/A pelo valor de R$ 580.000,00. Também esta nova empresa sequer fincou uma estaca no local.
O terreno onde está há quase um ano a Comunidade Eliana Silva está localizado em duas grandes glebas (lotes 29 e 30) na mesma região e apresenta as mesmas ilegalidades. O lote 30, uma gleba de 13.876,00 m², em 16 de janeiro de 2002, foi alienado pela CODEMIG, mediante contrato de compra e venda, para a Construtora Ourívio S.A., sem licitação, avaliação e pelo preço irrisório de R$ 111.008,00. As irregularidades são tão absurdas que no mesmo dia 16, tal terreno fora dado em pagamento pela Construtora Ourívio S.A ao Banco Rural S.A. (banco conhecido pelo Mensalão), pelo valor de R$ 1.216.586,42, ou seja, montante quase 11 vezes maior. Sete anos depois, no dia 28 de maio de 2009, o Banco Rural S.A., estranhamente, depois de tanto tempo e consequente valorização do terreno – o que vem acontecendo em todo o país nos últimos anos –, vendeu o terreno para um empresário chamado Newton Alves Pedrosa, dono do Supermercado das Portas e Janelas, pelo preço de R$ 166.512,00, quantia mais de sete vezes inferior ao valor de sua aquisição. Desse modo, o Banco Rural teve então um prejuízo de, no mínimo, R$ 1.050.074,42? Qualquer um que analise minimamente essa situação verá que existe muita coisa estranha e que merece devida apuração.
Por isso, atualmente, suspeitas de malversação do dinheiro público e de inadequado parcelamento urbanístico na região vêm sendo alvo de apuração em inúmeras ações coletivas ajuizadas pela Defensoria Pública de Minas Gerais e pelo Ministério Público de Minas, com pedido de, dentre outros, anulação das alienações com “reversão” dos imóveis ao patrimônio público estadual, em razão das diversas irregularidades evidenciadas e do completo abandono e desleixo que se encontravam tais terrenos, o que motivou a ocupação deles por centenas de famílias que ora estão ameaçadas pelas ordens judiciais de reintegração de posse. Deixar novamente sem moradia as três comunidades – Camilo Torres, Irmã Dorothy e Eliana Silva – não é justo, é insensato, é violentar os direitos humanos das 700 famílias que ocupam esses terrenos, onde já construíram cerca de 600 moradias.
Jogar 700 famílias nas ruas, em completo abandono social, e manter os terrenos nas mãos dos especuladores é inadmissível. É fazer coro com a enorme inoperância da prefeitura de Belo Horizonte, que não implementa programas habitacionais que possam enfrentar de verdade o enorme e crescente déficit habitacional. É permitir a continuidade da enorme irresponsabilidade do governo estadual por não ter projetos habitacionais em andamento em Belo Horizonte e deixar que a total omissão por parte do governo federal em relação a tamanhas injustiças continue.
O mínimo que exigimos é que se espere o julgamento de todas as Ações Civis Públicas que arguem uma série de ilegalidades e imoralidades que envolvem os terrenos onde estão as três comunidades ameaçadas. Enfim, lutamos pelo resgate das terras do Vale do Jatobá que foram ilegalmente repassadas para a iniciativa privada. Que essas terras sejam destinadas para um grande programa habitacional que garanta o direito constitucional e fundamental de moradia para as famílias que lá se encontram e que deram o melhor destino àquelas terras. Isso é o justo e por isso lutamos.
Frei Gilvander Luis Moreira é padre carmelita, mestre em Exegese Bíblica, professor de Teologia Bíblica, além de assessor da CPT, CEBI, SAB e Via Campesina.
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