Ressonâncias de Aprendizagem na Ocupação-comunidade Dandara
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- Gilvander Luís Moreira
- 29/11/2013
Jean Lave, uma antropóloga social, na Comunidade Dandara? Após cursar uma disciplina sobre Leituras de Jean Lave na Faculdade de Educação da UFMG, escrevemos esse texto com um olho nas reflexões de Jean Lave e outro olho na história e realidade de Dandara.
A Dandara começou como ocupação, mas se tornou uma comunidade. Na madrugada do dia 9 de abril de 2009, plena quinta-feira da semana santa, cerca de 130 famílias sem-casa, organizadas pelo MST e pelas Brigadas Populares, com o apoio de uma Rede de Solidariedade, ocupou um terreno – 315 mil metros quadrados (31,5 hectares) -, no bairro Céu Azul, na região da Nova Pampulha, em Belo Horizonte, MG.
Ao entardecer do 1o dia, quando as famílias já tinham se espalhado por todo o terreno, a tropa de choque da Polícia Militar chegou e, com grande aparato bélico e truculência, encurralou o povo em um dos cantos do terreno. Houve risco de massacre, muita tensão. O povo resistiu. A notícia da ocupação ocorrida se espalhou por Belo Horizonte através do Jornal da TV Record e de várias rádios. Centenas de famílias sem-casa e sem-terra começaram a chegar à ocupação Dandara em busca, inicialmente, de um pedaço de terra para tentar construir uma casinha para morar.
Um déficit habitacional de mais de 100 mil moradias só na capital mineira empurrou famílias para a cruz do aluguel, para sobreviver de favor em favelas, em áreas de risco ou nas ruas.
No 5o dia após a ocupação já eram 1.200 famílias que passaram a sobreviver em 1.200 barracos de lona preta. Desencadeou-se assim um importante processo educativo, de formação, misturado com lutas cotidianas em busca de terra e casa para se viver com dignidade. Estava nascendo uma comunidade de prática, na linguagem de Jean Lave.
Primeiro passo dado foi cadastrar o povo e organizá-lo em grupos de famílias. Cada barraca recebeu um número. Cerca de 50 grupos de famílias receberam a tarefa de se reunir todos os dias em horários combinados com todos, discutir todos os assuntos relativos à vida na ocupação, tais como escolher democraticamente pessoas para integrar as diversas Comissões que tiveram que ser organizadas na ocupação: a) Comissão de Segurança; b) Comissão de Alimentação; c) Comissão de Saúde; d) Comissão de Disciplina e Ética; e) Comissão de Comunicação; f) Comissão de Limpeza e Meio Ambiente; g) Comissão de Mística e etc.
Militantes das Brigadas Populares, do MST e da Rede de Apoio assessoravam todos os grupos, mas sempre envolvendo todos na co-responsabilidade pela gestão do acampamento. Todas as questões eram discutidas nos Grupos de Famílias, depois na Coordenação Geral e, finalmente, deliberadas por todos em Assembleias Gerais. Assim, por exemplo, se constituiu um Regimento Interno que foi aprovado com o seguinte teor:
1) A terra de Dandara é para quem mais precisa;
2) Participar da luta é condição para continuar tendo o direito ao lote;
3) O lote conquistado é para usufruto. É proibido vender ou comprar lote. Se alguém vender, a pena é: perde quem compra e quem vende;
4) Construir o mais rápido possível;
5) Não ser egoísta, preguiçoso e nem fofoqueiro;
6) Não pode construir e não morar. Quem não estiver morando, perderá o lote e a construção;
7) Cada família deve manter a limpeza do seu lote e da rua na frente do seu lote;
8) Todas as famílias devem cuidar de suas crianças;
9) Não deixar água empoçada para evitar dengue;
10) Após a legalização do Assentamento Dandara, o poder público fará uma inspeção a partir de cadastro. Quem tiver outra moradia, perderá o direito de continuar com a casa e lote na Dandara;
11) É necessária a participação nas reuniões dos Grupos, na Assembleia Geral (semanal) e nas lutas propostas pela Coordenação e pelas Brigadas Populares;
12) Contribuir com o pagamento das contas de água e de energia;
13) Todos os membros da Comunidade Dandara são co-responsáveis pela luta. Logo, devem ter iniciativa e propor ações que beneficiem toda a comunidade.
O Regimento, acima, deve ser seguido por todos. A coordenação e todos os membros da Comunidade Dandara têm a responsabilidade de zelar pelo respeito às normas e regras do Regimento interno.
Começamos a perceber o que Jean Lave defende: que a aprendizagem não é basicamente uma questão cognitiva. A experiência concreta, o assumir tarefas na gestão da ocupação e o fato de participar de uma comunidade se tornaram fatores de um intenso processo educativo.
Pessoas que nunca tinham sido respeitadas na sua dignidade, ao assumirem tarefas e passarem a responder por elas começaram a melhorar a estima própria. Quem sempre se considerava um zero à esquerda passou a responder por responsabilidades.
Pouco a pouco as pessoas – todas aprendizes naquela “comunidade” – começaram a entender que a forma de se autodefender dependia de todos. Todos ali constituíam uma grande corrente que tinha como o elo mais forte o mais frágil. Se um falhasse na sua responsabilidade afetaria negativamente toda a “comunidade”. Ao contrário, se todos (ou, pelo menos, a maioria) cumprissem bem suas tarefas e responsabilidades, toda a “comunidade” se fortaleceria.
A primeira experiência de prática, de luta concreta, que fez muitos aprenderem a força da união, foi quando a polícia, após encurralar todas as famílias que estavam dispersas pelo grande terreno, ameaçava expulsar todos do local. Um líder convidou todos a se abraçarem e formarem uma parede humana diante da polícia. Assim, cantando e rezando, resistiram. A polícia acabou desistindo de expulsar o povo naquele momento. Isso se deu também porque a Rede de Apoio chamou a imprensa que chegou e, caso houvesse violência, estava ali para mostrar para a sociedade. Não dava mais para expulsar sem a presença da imprensa.
Quando a polícia se retirou, o povo explodiu de alegria festejando a segunda conquista: não ser despejado. A primeira foi ter tido a coragem de cortar a cerca de arame que cercava o terreno. Estava iniciando para centenas de pessoas uma “participação periférica legítima”.
Quem estava na Comissão de Segurança passou a experimentar que tinha um poder pela segurança da ocupação. Tinha a autoridade de deixar entrar umas pessoas e impedir a entrada de “espiões” na “comunidade”. Quem ficou na Comissão de Limpeza e Meio Ambiente, ao cumprir sua tarefa, começou a ser reconhecido por outros. “Que exemplo bonito você está dando para todos ao cuidar da limpeza da nossa ocupação”, diziam uns. Assim, a ocupação gradualmente passou a ser entendida como “nossa”. Nascia ali uma “comunidade de prática”.
Foi também educativo participar da Comissão de Alimentação e coordenar a entrega das doações que começaram a chegar trazidas por pessoas de boa vontade e entidades que apoiavam a causa. Ao ver com os próprios olhos a solidariedade manifestada por tanta gente, muitos se emocionavam e diziam: “não estamos abandonados. Há muita gente que se preocupa conosco e que nos ajuda”. As relações tecidas no contexto – inúmeras e imprevisíveis – acabam tendo uma incidência no processo de aprendizagem, nos ensina Jean Lave.
Hoje, após quatro anos e meio de caminhada, de processo educativo e de luta pela organização interna e lutas para fora resistindo ao despejo, percebemos que muitas lideranças se formaram e estão participando ativamente de lutas, apoiando outras comunidades marginalizadas.
Muitas pessoas dizem: Eu era egoísta, fechado no meu próprio umbigo. Ao chegar aqui na Dandara, eu sonhava apenas em conquistar moradia própria, mas, hoje, percebo que o sentido da vida está em ser solidário e lutar pela construção de uma cidade e de uma sociedade em que caibam todos. Não consigo mais ser feliz de forma egoísta. Hoje, sozinha, sou só um pedaço de pessoa; mas, participando da comunidade, sou pessoa. É participando da comunidade que me torno mais humana. Hoje, faço parte de uma família verdadeira: a Comunidade Dandara (Depoimento de Ângela Fagundes, da Coordenação da Comunidade Dandara).
O depoimento, acima, encontrável em muitas pessoas que fazem parte da Comunidade Dandara, revela que a aprendizagem se deu de forma situada, em uma comunidade de prática e por participação periférica legítima, combinando pessoa, cultura e mundo social. Vejo nitidamente a análise de Jean Lave acontecendo na Dandara. Por exemplo, de não participação à participação periférica até chegar à participação plena que não pára. É óbvio que, no caso da Comunidade Dandara, muito mais do que habilidades, o que se aprendeu (e se continua aprendendo) é conviver em comunidade, crescendo na arte da convivência social, na luta pelos próprios direitos.
Dia 5 de julho de 2011, aconteceu a 3ª Marcha da Comunidade Dandara até o centro de Belo Horizonte. Mais de mil pessoas da comunidade marcharam 25 quilômetros a pé. Em duas filas bem organizadas, os nove grandes grupos Dandara (1) – do 1 ao 9 - marcharam. Uma faixa que ia à frente anunciava o motivo da Marcha: “Negociação, sim; despejo, não”. Mais de quinze faixas foram carregadas, mantendo um mínimo de sete metros entre uma e outra.
Cantos e gritos de luta entremeavam a manifestação de todos. Através de faixas e em gritos de luta, durante 10 horas de marcha um raio de luz fez o horizonte da capital mineira ficar mais belo. Moradores(as) de Dandara – aprendizes em um processo educativo situado – se revezaram no microfone, dando seu testemunho sobre a justeza da luta de Dandara. Muita gente ouviu, em alto e bom som, afirmações tais como:
- “950 famílias de Dandara já construíram com fé, coragem e muita luta 800 casas de alvenaria”.
- “Não aceitaremos ser despejados!”.
- “Se a polícia for nos despejar, haverá massacre, pois resistiremos até o fim defendendo nossos direitos”.
- “O terreno ocupado pela Comunidade Dandara estava abandonado há quatro décadas”.
- “A construtora Modelo devia (ainda deve?) mais de 2 milhões de reais em IPTU”.
- “Proprietário que não cumpre a função social perde a propriedade”.
- “A construtora Modelo era dona do terreno, não é mais, porque não cumpria a função social, condição indispensável ao direito de propriedade previsto na Constituição”.
- “Dandara luta pela construção de uma cidade (e sociedade) que caiba todos e todas”.
- “Povo organizado jamais será pisado”.
Em um contexto de liberdade de expressão, onde todos são animados a serem co-responsáveis pelo processo que está em curso, é bonito ver como as pessoas vão se desinibindo (um aprendizado) e descobrindo jeitos novos de ser, antes desconhecidos. Intuo que a “Aprendizagem Situada”, defendida por Jean Lave, referenda isso também.
Um canto embalava todos(as) os(as) marchantes. Dizia assim: “Daqui não saio, daqui ninguém me tira, onde é que eu vou morar. Eu não tenho paciência de esperar, ainda mais com sete filhos onde é que eu vou morar...” (bis). Em uma comunidade de prática, onde a música é valorizada, o(a) aprendiz se encoraja. Isso é aprendizagem também.
Uma criança dandarense, a Ingrid, ao lado de outras crianças, pediu o microfone. Cantaram “Oh Dandara, oh Dandara oh, a nossa luta aqui vale mais que ouro em pó...”.
Outra criança dandarense discursou conclamando todos a lutar até o fim pelos nossos direitos. Dizia:
“Antes de Dandara, a gente vivia humilhado. Na Dandara, levantamos a cabeça e vivemos com dignidade. Lá vivemos em comunidade. Não aceitaremos jamais despejo. Quero fazer outra denúncia aqui: A Escola estadual Manoel Costa disse para minha mãe que eu não poderia estudar lá por falta de vaga. Outra colega minha foi lá e conseguiu vaga após eu receber um não. A maioria das crianças da Dandara está indo estudar em escolas de Ribeirão das Neves. Temos que subir morro e descer morro para chegar à escola. Estudamos, porque temos interesse e nossos pais nos incentivam. Mas a diretora precisa fazer uma reforma na escola e o governo estadual demorou mais de um semestre para repassar o dinheiro...”.
Na Dandara vejo muitas ressonâncias da “Aprendizagem Situada” preconizada por Jean Lave e Etienne Wenger. Lá percebo que, de fato, a aprendizagem acontece como algo inerente à prática social. Não pode ser algo isolado do contexto social vivenciado pelo(a) aprendiz. A prática social é o foco central. Os autores propõem que a aprendizagem é um processo de participação em comunidades de prática, participação que é, primeiro, periférica e legítima, mas que aumenta gradualmente em engajamento e complexidade.
O território de Dandara, ao ser ocupado em 9 de abril de 2009, estava abandonado e não produzia nada. Hoje, em centenas de hortas nos quintais das mil casas de alvenaria já construídas, alimentos são produzidos e, acima de tudo, conforme dizem algumas pessoas de Dandara, “o que mais Dandara produz são pessoas”, porque ali quem antes eram coisificado passou a ser respeitado na sua dignidade e se tornou sujeito, protagonista de um viver mais humano. “É convivendo numa comunidade de prática que se aprende”, diria Jean Lave.
Enfim, um significativo processo de aprendizagem situada está em curso na Comunidade Dandara, com ambiguidades e contradições, é claro. Isso acontece na trama complexa, e muitas vezes imprevisível, entre pessoa, mundo social e prática, e se dá por participação periférica legítima em comunidades de prática, onde gradativamente o(a) aprendiz vai se envolvendo até chegar à participação plena, adquirindo identidade que se constitui no dia a dia da luta que não acaba.
Referência bibliográfica.
LAVE, J., WENGER, E., aprendizaje Situado, Participación perifética legítima, Universidad Nacional Autônoma de México, Facultad de Estúdios Superiores, Iztacala, 2003, p. 1-32.
Nota
1) Cada grande Grupo de Dandara tem cerca de 100 famílias.
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Frei Gilvander Luis Moreira é padre carmelita, mestre em Exegese Bíblica, professor de Teologia Bíblica, além de assessor da CPT, CEBI, SAB e Via Campesina.
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