A PPP da Casa Paulista: solução ou impasse para a moradia popular no centro de São Paulo?
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- Beatriz Kara José e Helena Menna Barreto Silva
- 12/12/2013
No início de 2012, veio a público uma proposta do governo estadual para a construção de 20.221 unidades habitacionais na área central da cidade de São Paulo, por meio de Parceria Público-Privada. À primeira vista, a proposta parece positiva, pois se trata de uma grande quantidade de moradias no Centro, sendo que 12.508 devem ser destinadas a famílias com renda entre 1 e 4 salários mínimos (as chamadas habitações de interesse social) e outras 7.713 a famílias com rendas entre 5 e 15 salários mínimos (as chamadas habitações do mercado popular). Além disso, a proposta garante que 2000 dessas moradias serão atribuídas aos movimentos populares (1).
Na audiência pública sobre a proposta (em 25/3/2013), o governo estadual confirmou que essa PPP consiste em uma concessão administrativa para que empresas privadas desempenhem as seguintes atividades: aquisição de terrenos (a desapropriação será implementada e paga pelos concessionários), elaboração de projetos, execução de obras de edificação habitacionais; elaboração de projetos e execução de obras para implantação de infraestrutura e equipamentos sociais; e prestação de serviços. A estratégia escolhida é a renovação urbana de seis setores, cujos limites são semelhantes aos das Zonas de Interesse Social (ZEIS-3), estabelecidos no Plano Diretor de São Paulo (2002). A oferta de habitação é apresentada como elemento integrador da renovação urbana.
A primeira etapa já foi cumprida e consistiu num edital para que escritórios privados realizassem “estudos técnicos e modelagem”. Com base no estudo de uma das empresas participantes – o Instituto de Urbanismo e Estudos para a Metrópole (URBEM) –, foi montado o edital para licitação internacional dos três “lotes de intervenção” (cada um englobando dois setores), inicialmente previsto para junho de 2013, ainda não lançado. Em 7 de junho de 2013, o governo estadual promulgou o Decreto de Desapropriação por Interesse Social (DIS 59.273/2013) envolvendo terrenos situados em todos os setores (2).
No momento em que se propõem instrumentos no novo Plano Diretor para garantir mais moradias populares nas áreas consolidadas da cidade e em que, depois de muita luta, se conseguiu interromper o projeto Nova Luz, é fundamental discutir os riscos dessa PPP, que retoma muitos conceitos desse projeto. Diversas críticas já foram levantadas por várias entidades da sociedade civil, mas é necessário aprofundar esses argumentos e trazer novas questões sobre pertinência da proposta. Ainda mais quando existe o risco de apoio da prefeitura e de uso de recursos para moradia popular do governo federal nesse projeto.
1. É importante produzir habitações no centro, mas a quem devem atender?
Embora as proporções de habitação social e de média renda pareçam coerentes com o texto das atuais ZEIS-3 e com as propostas em discussão para alteração do Plano Diretor, o que falta no centro é produzir moradias acessíveis às famílias de renda mais baixa, pois os programas foram pontuais e interrompidos há vários anos. Por outro lado, as faixas de renda média já estão sendo bastante atendidas por empreendimentos privados, tanto nas ZEIS-3 como fora delas. Aliás, tem ocorrido uma deturpação no uso das ZEIS-3, estimulada pelos órgãos de financiamento e tolerada pelo município, pois as empresas têm feito exclusivamente as unidades para a classe média, em desrespeito flagrante às regras estabelecidas no Plano Diretor de 2002, que exigiam a construção simultânea das duas modalidades. Seria lógico supor que, se a iniciativa privada não considera rentável atender aos mais pobres, o papel do poder público seria exatamente colocar recursos e subsídios para atender prioritariamente essa população, que é a que mais necessita de apoio para viver no centro em condições dignas, ou seja, escapar dos cortiços ou da situação de rua.
Os programas previstos na PPP são somente para venda. Ora, para garantir os direitos dos atuais moradores do centro, não é demais reforçar que a implementação de programas de locação social é fundamental para atender parte dos atuais locatários (grande parte nos cortiços) e segmentos específicos da população, incluindo os idosos.
E ainda, como garantir que estas unidades sejam mesmo atribuídas à demanda de renda média-baixa e, principalmente, baixa, que é a maior parte da população que habita e trabalha no centro? Da forma como a proposta se coloca, estabelecendo como vínculo ao centro o fato de se trabalhar com carteira assinada na região, em absoluto significa garantia ao atendimento desta população. Primeiro, porque boa parte não possui vínculo formal de trabalho, condição que também tem sido amplamente demonstrada por estudos do centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, por exemplo. O efeito perverso poderá ser o de justamente expulsar a população que tem vínculos de trabalho e moradia com a região central, os quais, mesmo não formais, fazem parte de sua estratégia de sobrevivência.
Trata-se de um projeto de repovoamento ou de substituição de moradores pobres por outros? Quantos moradores estarão sendo retirados para trazer novos moradores?
2. Melhorias urbanas, sim; renovação social excludente, não.
Como em todas as iniciativas para vender a ideia de renovação urbana, a qualidade do projeto urbanístico tem papel importante no marketing e aqui não é diferente. A proposta urbanística da URBEM apresenta uma série de diretrizes arquitetônicas interessantes, contrapondo-se aos atuais modelos dos grandes condomínios-clube e ressaltando modelos que respeitam a forma de ocupação existente na região central. Mas, ao mesmo tempo, ao priorizar o remembramento de lotes e demolição das edificações existentes, engendra o risco do oposto: da transformação radical do ambiente urbano.
Embora sejam necessárias melhorias nesses bairros centrais, os projetos e os meios utilizados devem ser compatíveis com a moradia e as atividades que hoje estão presentes. Uma intervenção em bairros antigos pode conter novas construções e melhorias nas edificações existentes. As possibilidades de transformação ou reciclagem devem ser analisadas caso a caso, envolvendo aspectos de custo-benefício e também a possibilidade de parcerias com os próprios proprietários atuais. Os limites das áreas para implantação das PPP coincidem com as ZEIS-3, onde estudos encomendados pela prefeitura em 2001/2002 mostravam a diversidade dos problemas e oportunidades existentes para reabilitação desses bairros. Como decidir sobre as melhores soluções, se o critério for apenas o arbítrio da empresa vencedora da licitação, por princípio interessada na melhor remuneração dos seus investimentos?
O que garante que o setor privado irá optar pela manutenção dos edifícios existentes? Lembremos que os setores de intervenção fazem parte do patrimônio histórico da cidade, abrigando não apenas imóveis já tombados, mas um tecido urbano ainda típico da região central.
Ou se busca exatamente uma nova identidade? Preocupa o discurso da URBEM e o marketing do projeto: “O que está em jogo é a reurbanização da Área Central de São Paulo. E essa reurbanização, dado o tamanho do território envolvido, pode ter um impacto decisivo na cidade, na economia da cidade, na eficiência da cidade, na beleza da cidade, na sua própria condição futura de metrópole de influência global” (Philip Yang, diretor da URBEM, na apresentação da proposta).
Esse modelo de intervenção urbana, formatando cidades “vendáveis” a investidores e turistas, tende a colocar em risco a garantia de permanência dos cidadãos pobres e atividades modestas, não compatíveis com a imagem, ou “produto”, que se deseja criar.
Em que pese a preocupação explícita com a qualidade urbanística, a proposta da PPP está fundada em intervenções pontuais de construção, que são as que vão dar lucro/rentabilidade ou viabilidade financeira à operação. A licitação de cada “lote” é vinculada a um número preciso de moradias de interesse social e de unidades para o mercado de renda média a serem construídas. Desse modo, dificilmente vai considerar a necessidade de realização de ações de reabilitação e melhoria, que poderiam beneficiar as condições de vida dos atuais moradores, criando, inclusive, condições para abrigar um número importante de unidades habitacionais em prédios reformados, com custos financeiros e sociais muito menores.
Além disso, os critérios para escolher os concessionários não respondem a preocupações mais amplas com o território. São exigidas garantias financeiras e qualificação econômico-financeira compatíveis com grandes empresas e conglomerados. Mas os atestados técnicos exigidos dos concorrentes se restringem ao volume de investimentos imobiliários anteriores, número de unidades construídas e experiência de gestão condominial. Um dos critérios de seleção será o “menor valor da contraprestação máxima anual” por parte do contratante, o que significa menor volume de subsídios, que tanto pode ocorrer por redução dos custos como por exclusão de famílias necessitando mais subsídios.
Segundo a delegação de poderes prevista nas normas da PPP, o concessionário acumula poderes extraordinários sobre o que poderá ocorrer no território. Basta refletir sobre o fato de que quem faz o plano é o mesmo que executa as obras e vende as unidades. Tal aspecto pode favorecer o predomínio da lógica de se construir o que for mais vendável e permitir maiores margens de lucro. Além disso, o edital não excluirá a possibilidade de que um mesmo concorrente vença as licitações para os três lotes.
Nesse contexto, que papel real poderiam ter os Conselhos Gestores, mesmo que implantados? Qual o papel da população moradora na elaboração dos planos?
3. Qual a pertinência e quais os riscos do Decreto de Interesse Social (DIS)?
O Decreto de Desapropriação por Interesse Social (DIS) emitido em junho de 2013 indica quais os imóveis a serem desapropriados e a possibilidade de a desapropriação ser realizada pelo concessionário da PPP. A lista inclui mais de 900 propriedades, que totalizam mais de 509 mil metros quadrados (3). A maior parte é constituída de terrenos com menos de 200 m² (construídos ou não), havendo mesmo pequenos prédios de apartamentos com comércio no térreo. Quantos estão ocupados? Por quem?
A população das áreas a serem afetadas está preocupada com o que poderá acontecer com seus comércios e residências. De fato, tiveram notícias do decreto de desapropriação pela mídia, e não porque foram visitados por representantes do governo encarregados de fazer o levantamento socioeconômico dos locais de intervenção do programa público. Vários terrenos indicados para desapropriação englobam imóveis encortiçados: o que irá acontecer com essa população, que faz parte do déficit habitacional do município?
Ainda há outras perguntas que precisam ser respondidas:
· Se a finalidade do DIS é construção de habitações populares, como justificar a retirada de moradores de baixa renda para construção de habitações de classe média, faixa para a qual o mercado já vem oferecendo unidades na região central?
· A utilização de terrenos objeto de desapropriação por interesse social não é permitida para construir espaços comerciais. Isso significa que nas áreas desapropriadas a proposta é fazer somente habitação? Qual o interesse de retirar o caráter multifuncional dessas quadras, prejudicando não apenas a oferta de comércio e serviços de proximidade como a oferta de empregos?
· O custo das unidades vai incorporar os custos das demolições e as demandas por lucros cessantes? Ainda que sejam subsidiados, é eticamente aceitável que recursos públicos sejam aplicados com o objetivo de trazer moradores de renda mais alta para esses setores?
· Esse custo adicional poderia contaminar as unidades de classe média que correriam o risco de custar mais caro do que aquelas que o mercado está produzindo atualmente, sem recurso a custos públicos de projeto, gestão ou subsídios.
O DIS inclui boa parte das ZEIS do Centro e dos imóveis disponíveis e adequados para programas de melhoria ou construção habitacional na região. Não apenas o programa da PPP é excludente como estará impedindo outros projetos adequados, que poderiam ser realizados por empresas públicas ou associações comunitárias.
Concluindo...
Se é verdade que os bairros centrais precisam de melhorias e de mais habitação, a delegação de atividades de planejamento, comercialização e gestão social ao setor privado (PPP) não é a forma adequada para atingir esses objetivos. Existem outros instrumentos que aproveitariam melhor os recursos disponíveis e garantiriam a mobilização e a participação da comunidade na implementação e na sustentabilidade do projeto.
Pelo que já se conhece, a proposta da “PPP do Centro” se caracteriza como um projeto de alto custo financeiro e social, feito sob medida para viabilizar a atividade de grandes empresas da construção.
Não devem ser esperados resultados para garantir moradia social no Centro, mas, ao contrário, a criação de mais dificuldades para esse objetivo.
Notas:
1) Ata da 53ª reunião ordinária do Conselho Gestor do Programa Estadual de Parcerias Público-Privadas.
2) O Ministério Público iniciou uma ação civil pública contra a PPP e, em 18/09/2013, o promotor Mauricio Ribeiro Lopes ordenou a paralisação do projeto, mas a disputa judicial continua.
3) Após forte pressão da população, o Decreto foi suspenso em 29/11/2013, para revisão da situação das áreas indicadas. Equipes do governo do estado constataram que grande parte das construções marcadas não estava subutilizada como alegado inicialmente. BRITO, G. Rede Brasil Atual, 29/11/2013.
Beatriz Kara José e Helena Menna Barreto Silva são pesquisadoras do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.