Empate urbano – de Chico Mendes ao Parque Augusta
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- Paulo Silva Jr.
- 06/01/2014
Francisco Alves Mendes dizia para quem quisesse ouvir naquele final de 1988: não chego até o Natal. O mais famoso líder amazônico na luta contra o desmatamento ganhou o mundo pregando a preservação da floresta e caiu morto, assassinado com um tiro de espingarda no peito, numa ida ao banheiro do próprio quintal de casa na noite de 22 de dezembro daquele ano, em Xapuri, Acre.
Antes, no dia 9, em entrevista reveladora concedida ao repórter Edilson Martins*, Chico revelara que o governador do Acre, Flaviano Melo, decidiu reforçar a segurança do seringueiro. “Ele sabe que meu assassinato vai complicar a situação do estado”. Mais que isso, o ativista deu até o nome dos bois: os irmãos Darly e Alvarinho Alves, proprietários da Fazenda Paraná, que segundo Chico eram mandantes de mais de 30 crimes, seriam os responsáveis por sua futura morte. De fato, 13 dias depois, Chico interrompeu a partida de dominó com dois seguranças para que a esposa arrumasse a mesa de jantar, jogou uma toalha nos ombros e deixou a cozinha rumo ao banheiro para tomar uma ducha. Foi atingido ainda na escada que dava no quintal pelo filho de Darly, Darci Alves, escolhido pelo pai para disparar o tiro histórico.
Em resumo, o foco de Chico Mendes, então presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri quando assassinado, era mobilizar a população local, formada majoritariamente por seringueiros, contra os desmatamentos orquestrados por grandes fazendeiros pecuaristas. Naquele tempo, foi criado o empate, processo que se difundiu com Wilson Pinheiro – presidente do Sindicato dos Trabalhadores de Brasileia (cidade acreana vizinha a Xapuri) e assassinado a mando de fazendeiros locais, quando assistia novela na sede do sindicato, numa noite em 1980 – e depois ganhou força com Chico Mendes. A explicação do empate nas palavras do próprio Chico, na já citada entrevista de 9 de dezembro de 1988:
“(O empate) é uma forma de luta que nós encontramos para impedir o desmatamento. É uma forma pacífica de resistência. No início, não soubemos agir. Começavam os desmatamentos e nós, ingenuamente, íamos à Justiça, ao Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal e aos jornais denunciar. Não adiantava nada. No empate a comunidade se organiza em mutirão, sob a liderança do sindicato, e se dirige à área que será desmatada pelos pecuaristas. A gente se coloca diante dos peões e jagunços com as nossas famílias – mulheres, crianças e velhos – e pedimos para eles não desmatarem e se retirarem do local. Eles, como trabalhadores, a gente explica, que também estão com o futuro ameaçado. E esse discurso emocionado sempre gera resultados. Até porque quem desmata é o peão simples, indefeso e inconsciente. Bom, de março de 1976 até agora (final de 1988) já realizamos 45 empates, sofremos 30 derrotas e tivemos 15 vitórias. (O objetivo) É criar um fato político. Mais que isso: desapropriar a área e finalmente criar a Reserva Extrativista”. Na época, Chico calculava cerca de 150 mil hectares no Acre já assegurados nesta condição de reserva.
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Dezembro de 2013. Depois de anos de manifestações, o movimento de pessoas na luta pela criação do Parque Augusta – um terreno de 25 mil metros quadrados e Mata Atlântica nativa entre as ruas Augusta, Caio Prado e Marquês de Paranaguá – se intensificou no segundo semestre deste ano, ao tempo em que o proprietário do terreno, o banqueiro Armando Conde, passou o controle do local para as incorporadoras Cyrela e Setin. O projeto das construtoras definiu a construção de duas torres comerciais e um bosque administrado e controlado pela própria iniciativa privada na área tombada e tomada por árvores nativas.
Enquanto isso, em novembro, a Câmara dos Vereadores aprova o Projeto de Lei 345/2006 que define o uso do terreno para a criação do parque público. O prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, tem, portanto, um mês para sancionar o PL.
As pessoas que já frequentam o Parque Augusta há algum tempo – e trabalham no mesmo, até então uma região desprovida de qualquer cuidado com limpeza, por exemplo – decidem organizar o I Festival Parque Augusta no final de semana dos dias 7 e 8 de dezembro, como forma simbólica de inaugurar a área. E os dois dias de oficinas, música, arte, intervenções culturais e educação ambiental apresentam, definitivamente, o local para a população paulistana, um lampejo (o último!) de área verde na rota boêmia, ainda que desconfigurada e com prédios estuprando botecos sujos, do Baixo Augusta.
Mais e mais pessoas passam a frequentar o parque. A cada dia ele ainda surpreende crianças, jovens, adultos, idosos. É uma realidade, ora. Mas o festival é só um passo da luta daqueles que querem tornar um parque com Mata Atlântica um terreno que não quer ver prédios com cara de Berrini. E o movimento se organiza em ato na frente da prefeitura de São Paulo, quarta-feira, 18 de dezembro, para ouvir de forma extra-oficial que, sim, o Parque Augusta vai sair.
A opinião pública ganha um novo debate: afinal, mais dois prédios ou a preservação total de um oásis na caótica selva de pedra? O artista Pedro Rocha se maravilha com uma volta no Parque Augusta e fala que “é fundamental ver a força do corpo crescer como vegetação”, “apostar nos processos poéticos e afetivos”; uma semana depois, o escritor, dramaturgo e roteirista Marcelo Rubens Paiva lembra que “já há duas propostas de parques a serem tomados, o Parque Pinheiros e a Chácara do Jóquei, além de tantos outros por aí”. Encoraja a população e, mais, convoca um debate com outros quatro comunicadores para o sábado, 21 de dezembro.
Cadão Volpato é jornalista, músico, crítico literário, apresentador. Jamais havia entrado no Parque Augusta. Revela ainda que nem tinha se dado conta de tamanho número de árvores que existiam ali por trás de um muro. Vê os filhos sorrindo ao conhecer o bosque e fala sobre a região: “se olharmos para os lados vemos que a Augusta está perdendo a cara, só tem espigões. Eu morava na Frei Caneca, e hoje só tem prédio, o trânsito é incalculável, é uma tendência do bairro e o parque começa a reverter isso. Isso é pra cidade toda, é um ganho político para São Paulo”.
Antônio Prata estudou filosofia, cinema e ciências sociais. É escritor e roteirista. “Eu tinha duas propostas para São Paulo. Uma delas eu trouxe de Chicago, que é a cidade mais bonita que eu já fui e pegou fogo em 1904, se não me engano, quando uma vaca chutou um lampião. Então construíram uma cidade do zero, o que é ótimo. Outra maneira menos radical é pegar esses dias de congestionamento de 400km, tirar todo mundo dos carros e aterrar os veículos pra começar uma cidade com ciclovias, jardins. Então quando a gente vê um negócio deste como o Parque Augusta acontecendo, fica mais esperançoso sobre a mudança”.
Marcelo Tas é apresentador, roteirista, ator. “São Paulo era um lugar muito lindo que foi devastado por seres humanos. Mas por que eu vim morar em São Paulo e estou agora há 30 anos aqui? Por causa das pessoas que moram em São Paulo. Entrei aqui (no Parque Augusta) pela primeira vez hoje, e olha que circulo muito por essa cidade. Mas quando eu entrei aqui, eu falei: o Parque Augusta não tem mais volta. São poucos lugares que eu entrei e me senti tão acolhido pela natureza”.
Pedro Ekman é jornalista e milita pela democratização da mídia. “O principal ganho que a gente tem é justamente a apropriação e disputa do espaço público pela própria população. O Brasil tem uma tradição de entender o que é público como o que é do Estado. TV pública, a gente pensa que é estatal. E vir pra cá e dizer que aqui tem de ser um parque, não um estacionamento, é disputar os espaços. Então vamos ocupar os relógios públicos, a TV do ônibus, os canais de TV. Nem o Saad, nem o Silvio Santos, nem o Edir Macedo, nem o Marinho são donos dos canais, eles são da população brasileira. E uma coisa que já podemos definir é que aqui não vai ter grade nem muro. No Brasil a gente separa o lado de fora do lado de fora. Vamos radicalizar essa concepção”.
Pouco antes do debate, o cantor e compositor André Abujamra se apresentou com a banda Mulheres Negras e sentenciou: “quem não faz política, aceita a política que fazem com a pessoa. Isso é mais que um parque, não é nem um pólo cultural, é um pólo de seres humanos reunidos, entendeu?”.
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Não chega até o Natal.
O domingo, 22 de dezembro, amanhece com cartazes de Chico Mendes nos postes que ligam meu caminho da Praça da República até o Parque Augusta.
O empate urbano segue. Moradores desta São Paulo que não se aguenta mais nos próprios limites enfrentam os paradigmas do suposto desenvolvimentismo e entram na madrugada com uma vigília frente ao portão. Sim, portão, colocado às pressas e aumentando o cerco diante da única entrada do parque aberta, aquela que corresponde a um estacionamento (mais um!) privado.
A segunda-feira, 23, é de expectativa. E a terça, 24, amanhece com o prefeito sancionando o Projeto de Lei. O terreno é, finalmente, uma área dedicada à construção de um parque, que agora tem em centenas de pessoas, reunidas voluntária e espontaneamente, o fim de levar para frente o projeto de autogestão da área pública, aberta a todos, heterogênea, transparente, livre. E, claro, acompanhar como se darão as negociações entre município e iniciativa privada em relação ao terreno.
“Durante curso recente de formação de lideranças no Acre, um jovem seringueiro foi convidado a expressar, em desenho, o que pensava sobre o futuro da Reserva Extrativista Chico Mendes, um bolsão verde de 970 mil hectares que atravessa seis municípios e simboliza a luta ambientalista no estado. O rapaz, de uma comunidade tradicional da floresta, não hesitou: em traços rápidos, desenhou um prédio” – jornal O Globo, dezembro de 2013.
Para que quando alguém perguntar sobre o futuro da rua Augusta, existam cada vez mais rabiscos verdes.
Longa vida ao Parque Augusta.
* Como o editor do Jornal Brasil considerou que “o entrevistado politizou demais a entrevista” e engavetou o material, o conteúdo da mesma foi publicado só no dia 24 de dezembro, quando a imprensa do país se deu conta da repercussão internacional do caso.
** A entrevista completa citada neste texto está no livro Chico Mendes – Um Povo da Floresta, de Edilson Martins (editora Garamond); outro bom livro sobre o tema é Chico Mendes – Crime e Castigo, de Zuenir Ventura (Companhia das Letras); o filme Burning Season (Amazônia em Chamas, em português) tem Raul Julia no papel de Chico Mendes e está disponível na íntegra no Youtube.
*** Informações sobre o Parque Augusta estão na página de mesmo nome no Facebook ou em www.parqueaugusta.org.
Paulo Silva Junior é jornalista, autor do livro “O Acre existe” e frequentador do Parque Augusta.