‘Inevitavelmente, a sociedade terá de se abrir mais para o debate das drogas’
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- Gabriel Brito, da Redação
- 06/02/2014
Mais uma vez, o ano da cidade de São Paulo começa com uma operação do poder público na Cracolândia. No entanto, contrariamente à famigerada operação “dor e sofrimento” empreendida pelo governo estadual tucano, nos inícios de 2012, o programa Braços Abertos, da prefeitura petista de Fernando Haddad, aparece com uma nova proposta de relação e tratamento com os dependentes, tentando oferecer condições de inseri-los socialmente ao mesmo tempo em que se tenta administrar a dependência química.
Para discutir o programa recém-lançado, o Correio da Cidadania entrevistou o médico psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, professor da Unifesp e conhecido nos debates e propostas anti-proibicionistas, que vão na direção contrária da doutrina de guerra às drogas – cada vez mais contestada e desmistificada.
“Penso que a proposta da prefeitura é a única que tem alguma fundamentação. Embora seja uma inovação, em termos de Brasil, já foi testada em vários países de ponta e é a única coisa que funciona. Internação compulsória é uma situação de artificialidade”, explica Dartiu, que não tem dúvidas em ressaltar o fracasso do modelo anterior, algo já reconhecido inclusive por quem o elaborou, isto é, os EUA.
“Na verdade, o que vemos na Cracolândia é que o uso de drogas não é necessariamente maior do que em outros grupos. O que choca é por ser na população de rua, o que tem muita visibilidade”, afirma, indicando que ainda teremos de discutir mais abertamente a relação de toda a sociedade, ou ao menos boa parte dela, não só com o crack, mas também com diversas outras drogas, consumidas em todas as escalas socioeconômicas.
Correio da Cidadania: Primeiramente, como você avalia o programa Braços Abertos, recentemente lançado pela prefeitura de São Paulo, cujo objetivo é interferir no cotidiano da população da Cracolândia? Trata-se de uma derrota da ideia da “internação compulsória”?
Dartiu Xavier da Silveira: Penso que a proposta da prefeitura é a única que tem alguma fundamentação. Embora seja uma inovação, em termos de Brasil, já foi testada em vários países de ponta e é a única coisa que funciona.
Internação compulsória é uma situação de artificialidade. Tira-se o indivíduo da rua e ele fica preso, o que na verdade é um modelo mais carcerário do que de tratamento de saúde. Enquanto está preso, é claro que não usa droga. Mas, quando volta pra sua vida, com todos os problemas, há a recaída. Mais de 90% recaem.
A internação compulsória é artificial, pois é preciso melhorar as condições básicas da vida do usuário. Mesmo porque na Cracolândia, e em outros lugares, as pessoas não chegaram àquela situação de miséria social por causa da droga. Chegaram naquela situação por falta de acesso à moradia, trabalho, educação, saúde...
E em situações de tanta vulnerabilidade social, favorece-se o uso das drogas. Mas ele é consequência. E a proposta do Braços Abertos busca atingir a causa do problema, e não só uma consequência, um desdobramento, como no caso do uso da droga.
Correio da Cidadania: Alguns analistas, mesmo reconhecendo os avanços dessa atual abordagem, não deixam de considerar que se trata ainda de medidas um tanto autoritárias, pois não resultaram de uma interação efetiva com a população, avaliando mais profundamente suas aspirações e condição física. Com o que os resultados finais acabarão incidindo sobre a ‘limpeza da cracolândia’, apenas de forma menos arbitrária. O que pensa disto?
Dartiu Xavier da Silveira: O programa não é nem um pouco truculento, pois ninguém é obrigado a fazer nada, nada é arbitrário ou coercitivo. Não dá pra comparar com internação compulsória ou justiça terapêutica.
Internação compulsória e justiça terapêutica são afrontas aos direitos humanos, cerceiam a liberdade individual e o direito de ir e vir. Violam garantias constitucionais.
Correio da Cidadania: O que pensa a respeito da ação da polícia civil, que fez incursão pelas ruas dessa conhecida zona de consumo e tráfico de drogas, de forma inesperada e violenta?
Dartiu Xavier da Silveira: Aquilo é ostensivo... Sabendo da proposta do programa Braços Abertos, foi de encontro total à operação da prefeitura. Eu entendo como boicote, um boicote civil.
Fala-se que a polícia civil teria entrado em cena porque a operação Braços Abertos teria ameaçado a lucratividade do tráfico. Muita gente que lucra com isso por ali no centro se incomodou, pois está ameaçada de ganhar menos dinheiro.
É o que se fala. Se for verdade, caímos nas velhas histórias de corrupção.
Correio da Cidadania: Acredita que tal situação esteja, mesmo involuntariamente, protagonizando um choque de interesses políticos entre distintas correntes e partidos?
Dartiu Xavier da Silveira: Não sei se chega a ser assim, porque na verdade sabemos que a política do Estado é diferente da política da prefeitura. A política do Estado é coercitiva, repressiva, baseada em modelos já ultrapassados.
Pra se ter uma ideia, esse modelo defendido pelo governo estadual é praticado apenas em países tradicionalmente afrontosos aos direitos humanos, basicamente China e países islâmicos, ou seja, fundamentalistas. Hoje em dia, nem os EUA, com seu passado de “guerra às drogas”, aceitam mais tal tipo de política pública.
Correio da Cidadania: O que pensa a respeito da repercussão social e especialmente midiática da operação lançada pela prefeitura?
Dartiu Xavier da Silveira: Dei muitas entrevistas nessas últimas semanas e o que me incomodou um pouco foi que a maioria dos jornalistas já tinha uma opinião prévia e formada. Assim, eu tinha de desconstruí-las, porque eles já tinham uma visão negativa a respeito de uma política do tipo. Desse modo, vejo que a mídia tem uma tendência mais reacionária. Apesar disso, creio que está reagindo bem. Algumas matérias são muito boas, outras são francamente reacionárias.
Já no público, acho que a ideia da prefeitura é bem aceita. Inclusive na Cracolândia, a população responde muito favoravelmente. Eles veem que aquela postura mais repressiva e agressiva fomenta muita violência. Agora há uma postura de colaboração, e a população está vendo de forma bem favorável.
Correio da Cidadania: Que políticas você pensa que poderiam ser de fato efetivas para lidar com uma situação como a da Cracolândia, especialmente no que se refere à dependência química, de modo geral? Como o sistema de saúde pode ser inserido nessa questão?
Dartiu Xavier da Silveira: Embora a iniciativa tenha saído da Secretaria do Trabalho, a proposta do Braços Abertos, nasceu no campo da saúde, foi uma ideia da saúde. Porque já se constatou que, embora exista um sistema de saúde muito interessante (o sistema CAPS-AD - Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas -, o que há de mais eficiente hoje em dia), ficava-se enxugando gelo. Não basta abordar o indivíduo pelo ponto de vista médico e psicológico se ele não tem onde morar, tomar banho, comer, trabalhar... Portanto, a lógica é essa.
Correio da Cidadania: Em que estágio acredita estarmos, no contexto nacional, em termos de tratamento da dependência química e também a maneira como a sociedade convive com essa realidade?
Dartiu Xavier da Silveira: Eu acho que nossa sociedade é bastante reacionária. Ficamos muito tempo copiando o modelo de guerra às drogas, um modelo lançado na década de 70 pelos EUA. Na década de 90, os EUA fizeram uma série de pesquisas e constataram que era tudo falho, que o programa de guerra às drogas não valia nada.
Inclusive, saiu uma avaliação muito criteriosa em 1991, dizendo “guerra ás drogas é uma ilusão. Não funciona pra coibir uso, dependência, não funciona pra nada”.
Apesar dessa mudança de postura, o Brasil continuou a copiar o modelo, que ainda tem prestígio por aqui. Existe uma mudança nos últimos anos, uma tendência de se abrir mais ao modelo europeu, que é mais eficaz e vai no sentido da redução de danos.
Porém, ainda há muita resistência aqui, justamente por conta da postura reacionária de nossa sociedade.
Correio da Cidadania: Acredita que essa experiência possa ajudar na introdução de um debate mais aberto a respeito da legalização e controle de consumo de certas drogas, inclusive outras que não a maconha?
Dartiu Xavier da Silveira: Acho que tudo que está se levantando são coisas que inevitavelmente teremos de debater. O mundo inteiro está debatendo e não vamos ficar pra trás, né? Nosso vizinho já legalizou a maconha, não podemos fingir que nada está acontecendo.
O programa Braços Abertos não tem uma proposta de legalização, longe disso. Mas claro que levanta uma série de questões. Não adianta forçar uma pessoa a não usar drogas. Assim, não se está ajudando a pessoa a resolver seu problema de dependência. É isso que o programa está demonstrando. Quer ajudar? Precisa oferecer trabalho, moradia, qualidade de vida. Assim que se ajuda a pessoa a administrar sua relação com as drogas.
Correio da Cidadania: Você enxerga mais feridas a se tocar, na relação da sociedade com as drogas?
Dartiu Xavier da Silveira: Creio que sim. Penso que inevitavelmente cairemos nisso. Na verdade, o que vemos na Cracolândia é que o uso de drogas não é necessariamente maior do que em outros grupos. O que choca é por ser na população de rua, o que tem muita visibilidade. Mas as pessoas que estão nos bairros ricos de São Paulo, em seus apartamentos, cheirando cocaína ou fumando maconha, não têm visibilidade. Ficam como população escondida, anônima, e grande parte delas não é dependente, é apenas usuária da droga. No entanto, quando se vê o usuário de droga na rua, ele já recebe o rótulo de dependente.
Gabriel Brito é jornalista do Correio da Cidadania.