“Reduzir a maioridade penal é retroceder no processo de efetivação de direitos”
- Detalhes
- Raphael Sanz, da Redação
- 08/05/2015
Em meio a tantas ofensivas conservadoras no que diz respeito aos direitos das minorias, das crianças e adolescentes e a discussão no Congresso Nacional sobre uma possível redução da maioridade penal, o Correio da Cidadania conversou com três responsáveis pelo Sefras Cárcere – a coordenadora do projeto, Camila Gibin, a assistente social Aline Dias e o Frei Alex Ferreira – a respeito do trabalho que desenvolvem dentro dos presídios. Na conversa, discutimos questões que permeiam o sistema penal e prisional.
O Sefras – Serviço Franciscano de Solidariedade – existe há 15 anos e desde o final de 2011 tem um grupo denominado Sefras Cárcere dentro dos presídios e das unidades da Fundação Casa. Trata-se de uma iniciativa socioeducativa que tem como foco discutir questões da sociedade e temas da atualidade de maneira crítica com os internos.
O objetivo principal é criar espaços de convívio com a população presa e desenvolver reflexões e pensamento crítico a respeito dos temas propostos. Além disso, tenta-se possibilitar que a pessoa em situação de cárcere pense a respeito do delito que cometeu de forma mais ampla, levando em consideração seu próprio contexto social e cultural.
Confira a entrevista abaixo.
Correio da Cidadania: Como é o trabalho do Sefras com a população em situação de cárcere e quais as principais diferenças, tanto na questão de gênero quanto na questão etária dentro do sistema prisional?
Aline Dias: Atualmente, estamos em algumas unidades da fundação Casa e unidades com mulheres. Os temas perpassam os espaços. Trabalhamos a questão de gênero com ambos, meninos e meninas, só que de forma diferente. Essas pessoas também são atingidas, de formas diferentes, por tais temáticas. Há uma diferença se a pessoa é adolescente ou adulta, se homem ou mulher. Tentamos fazer uma análise da realidade que a pessoa vivencia e propor atividades direcionadas.
Creio que essa é a diferença. Além da ação que fazemos com as pessoas encarceradas, o Sefras Cárcere também acompanha ações junto com os familiares e propõe a discussão do que está se vivenciando, porque o processo de encarceramento afeta quem está na prisão e outras pessoas ao redor, principalmente os familiares. Trazer a discussão para fora do cárcere também é muito importante.
Correio da Cidadania: Podemos dizer que os familiares também estão em situação de cárcere?
Aline Dias: Eles são criminalizados pela forma como o processo ocorre, pela ausência de informações durante todo o processo, tanto com um adolescente quanto com um adulto, pela forma com que o familiar é tratado nos ambientes prisionais, pela revista que é feita de forma vexatória e por uma série de coisas que acontecem e mudam o cotidiano, a rotina, do familiar de uma pessoa encarcerada. Também há o próprio preconceito no ambiente de trabalho, na própria comunidade onde vive. Existe uma série de fatores para os familiares, que acaba contribuindo para um processo de criminalização deles também.
Frei Alex: Outra diferença que existe no sistema prisional é o fato de ser feito para homens. Todo o sistema é voltado para os homens em uma perspectiva masculina. Isso acaba atingindo as mulheres de uma maneira muito mais violenta e agressiva, porque, tanto na fundação Casa quanto no sistema prisional feminino, não são atendidas as necessidades básicas das mulheres. Assim, com frequência, vemos casos em que faltam absorventes, elas têm de improvisar para suprir algumas necessidades básicas... Enfim, é um tipo de violência que ocorre pelo fato de serem mulheres.
Correio da Cidadania: E que outros exemplos de diferença de tratamento entre homens e mulheres vocês enxergam?
Camila Gibin: O direito e o sistema penal são formulados a partir da visão masculina. Há uma característica de construção pelos homens e carrega essa coisa machista. Tanto as leis como o poder judiciário são assim, simbolizado nas figuras do juiz, do promotor e até do policial, que é o primeiro a abordar as pessoas.
Todo o sistema penal é demarcado pela questão masculina e, quando a mulher é capturada por esse sistema, sofre, não só pelo fato de ter cometido um suposto crime, mas pelo fato de romper com o papel social pré-definido de mulher ideal. O que está colocado é que a mulher tem de assumir uma postura de comportamento docilizada. A sociedade diz que a mulher tem de ser um sujeito dócil, estar dentro do ambiente familiar, do espaço privado do lar; ela tem de assumir esse espaço como o seu lugar ideal – claro que não é bem assim, porque as mulheres também precisam trabalhar e fazer uma série de coisas, mas existe uma certa expectativa social quanto a isso. Quando ela rompe isso, deixa de ser a mulher submissa e passa a ter um comportamento ativo para a sociedade. Com a prática de um crime, mais ainda, pois ela rompe com a dimensão formal, a legal e também com uma dimensão informal: o patriarcado.
Assim, ela assume duas penas nesse sistema: uma pelo crime que cometeu e outra mais social, por romper com os valores esperados em uma mulher. Conheço, por exemplo, casos de mulheres que acabam ficando mais tempo presas do que homens que cometeram o mesmo tipo de delito; a mulher fica presa mais tempo com o processo parado, enquanto, para o homem, o processo caminha mais rápido e, muitas vezes, o alvará de soltura chega mais rápido também.
Frei Alex: E há um abandono inclusive por parte dos companheiros, porque, quando um homem é preso, geralmente a companheira continua visitando-o, ele recebe visitas frequentes. Quando a mulher vai presa, com certa frequência é abandonada pelos seus companheiros.
Correio da Cidadania: Em relação às atividades socioeducativas, quais vocês julgam mais interessantes e que objetivos seriam mais primordiais?
Aline Dias: Construímos as atividades a partir do conceito de educação popular. Mais importante do que falar de uma atividade em si, precisamos falar da nossa concepção quando criamos uma atividade. Vamos aos espaços – tanto na fundação Casa quanto nas unidades prisionais – entendendo que nossa proposta é construir junto com eles o conhecimento.
Fortalecer em conjunto coisas que as pessoas já carregam, que são histórias de vida, reflexões etc. Tudo em coletivo, não damos palestras, não estamos lá para falar uma série de “verdades” e esperar que as pessoas absorvam. Vamos para o diálogo, para a criação. Construímos as oficinas a partir das falas dos adolescentes, das mulheres.
Em termos de situações que chamam a atenção, utilizamos, por exemplo, músicas e artes em geral, pois são pontos de muita aderência. O adolescente fala de sua vida a partir de um ritmo musical que gosta. Portanto, trata-se de falar de questões normalmente tidas como chatas ou pesadas, de uma forma lúdica.
Correio da Cidadania: O que costuma chamar mais atenção através desses métodos de trabalho?
Aline Dias: Lembro quando trabalhamos a questão do funk com os adolescentes. Porque o funk é muito criminalizado na juventude. Parece que os jovens não podem ouvir funk ou que só tem um tipo de funk. Discutimos o que isso tem a ver com eles e a comunidade. E o que chama mais atenção é a partilha deles, de suas histórias. Mesmo em grupo, alguém expõe sua vida mais a fundo, porque se construiu um vínculo, ou aconteceu alguma coisa para a pessoa se sentir à vontade diante do grupo para compartilhar.
Camila Gibin: Uma das coisas que temos muito clara é que partimos da educação popular como método e como teoria, no sentido de a educação popular ser classista, sem um caráter de neutralidade. Ela tem um caráter político. Assim, nossa ideia é construir um olhar das coisas que acontecem no cotidiano, a partir do olhar e dos interesses deles mesmos.
Isso é importante de ser colocado porque a nossa ideia não é ir lá e impor. Escutamos as histórias de vida, nos apropriamos disso, trocamos histórias, mas não partimos de uma neutralidade como forma de mediar essas histórias de vida. Queremos chegar a algum lugar com tudo que estimule o pensamento crítico do contexto vivido. Não é aquela coisa de trocar por trocar, conversar por conversar, não é um chá com bolinho. Temos um método para fazer o debate.
Precisamos entender a realidade em que vivemos, a realidade do cárcere e por que as mulheres são mais criminalizadas do que os homens. Nosso papel é contribuir para desvendar um pouco as coisas que estão acontecendo, com a ajuda das pessoas que estão participando diretamente do processo.
Ou seja, quando dissemos que conversamos com um menino sobre o funk, não significa que vamos achar normal aquele adolescente gostar de uma música cuja letra diz ser mais interessante ter um tênis e uma série de produtos de consumo ao invés de ser alguém na vida, certo? Não achamos bacana, fazemos contestações a eles.
Não vamos lá com o caráter de julgar, mas nosso papel também é contestador, de fazer uma mediação junto ao adolescente para que ele, de fato, tenha aquele momento para pensar o que representa uma letra de música que só fala sobre consumir. O que representa para a sociedade? Quando dizemos que escutamos o outro, não quer dizer que não nos posicionamos diante da realidade.
A oficina é um espaço onde os conflitos devem aparecer para que nós possamos superá-los dentro de uma perspectiva crítica. E quando você pergunta sobre um caso, existe um que o Frei Alex conhece melhor, ocorrido num dia em que estávamos discutindo a violência contra a mulher com uns meninos, e havia uma pessoa no grupo que estava na Fundação Casa justamente por isso.
Frei Alex: Ele namorava a menina desde os seus 14 anos, foi a primeira namorada. Um dia ele chegou em casa, a viu com um outro garoto e esfaqueou os dois. Em um momento da atividade no qual abordamos o assunto, ele o trouxe à tona e pudemos conversar com ele a respeito.
Camila Gibin: E discutir por que ele fez isso, não no sentido de julgá-lo, mas de compreender que mundo é esse que faz os homens acharem que as mulheres são objetos, propriedade, acabando por ter comportamentos violentos contra elas. A partir dessas histórias, conseguimos refletir não através do sujeito, no caso, esse menino que esfaqueou, mas a partir de um contexto social que leva os homens a acharem as mulheres uma posse deles.
Esse é um caso bastante emblemático. Nos meus grupos também sempre aparece algo quando discutimos gênero com os meninos e essas situações. Eles sempre falam do cotidiano e da maneira como se relacionam com as meninas. É bastante marcante. A gente consegue criar um espaço com a população, um espaço de acolhimento, de diálogo, uma abertura para discutirmos criticamente o cotidiano e tirar aquela culpabilização individual, porque o culpado não é necessariamente esse menino que esfaqueou.
O culpado real da história toda é a sociedade, que continua permitindo aos homens dominarem as mulheres. Ou seja, a sociedade culpabiliza o menino, mas não responsabiliza os comerciais de TV, por exemplo, que tratam as meninas como objeto, colocam a mulher como qualquer coisa, como a pessoa que tem que limpar a casa etc.
Tudo isso é uma indústria ideológica que faz as pessoas acreditarem que a mulher é uma 'coisa'. O que esse menino fez é, no entanto, apenas o extremo de tal violência. No final, ele percebe o quanto é ruim [cometer um crime como esse] e existe uma cultura por trás [desse crime] que precisa ser combatida e responsabilizada.
Correio da Cidadania: Tendo em vista que vocês trabalham com muitos jovens, qual é a visão de vocês a respeito da tão discutida redução da maioridade penal?
Aline Dias: Somos contrários. É importante dizer que a proposta é uma em meio a tantas outras que querem retroceder o processo de efetivação de direitos. Temos um Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) com 25 anos de existência e ainda temos uma sociedade que não entende as crianças e os adolescentes. Entendem-nos como “o menor”. Se o adolescente é pobre, é tratado de uma forma, se rico, de outra.
Assim, se temos um sistema socioeducativo que na verdade serve para aplicar penas a um adolescente pobre, o nosso discurso de oposição tem de ser muito forte, contra todas as outras questões, como elevação de pena, aumento do internamento na fundação Casa... A redução é uma resposta rápida, mas nem resposta pode ser considerada. É um retrocesso.
A mídia passa uma ideia irreal, de que os adolescentes são perversos, de que temos uma juventude que mata a todo instante... Não é a realidade. Os crimes contra a vida cometidos por adolescentes estão em menos de 1% do total. Se não pontuarmos tais questões estruturais, podemos cair no erro de dar crédito a propostas como esta e outras várias.
Correio da Cidadania: E que semelhanças e diferenças vocês podem pontuar entre a prisão dos adultos e a fundação Casa?
Camila Gibin: Quando tentamos fazer o comparativo entre a Fundação Casa e o sistema prisional dos adultos, vemos que, do ponto de vista da estrutura das unidades e do próprio procedimento do processo, de como se desenvolve, não tem, de fato, muita diferença. Algumas unidades da fundação Casa passaram por reformas, têm uma organização diferente, com casas menores, uma quantidade teoricamente menor de adolescentes, comparada à antiga Febem.
Mesmo assim, o caráter que tais espaços assumem não é de uma perspectiva de educação, mas, sim, da segurança e do controle. O que rege a Fundação Casa e o sistema prisional dos adultos é a disciplina. São esses os setores, dentro da estrutura das duas instituições, que vão determinar as atividades a ocorrerem lá dentro.
Quando vamos ao presídio dos adultos, precisamos de autorização do setor da disciplina para fazer atividades. Quando vamos à Fundação Casa, também será com esse setor que vamos conversar. Ou seja, são duas instituições regidas prioritariamente pela dimensão da segurança e da disciplina.
Do ponto organizacional, não tem muita diferença. E quando vamos vendo a questão de como se dá o processo de encarceramento do adulto e do adolescente, a gente sabe que o do adolescente é muito mais violento. Isso porque vivemos numa sociedade em que adolescente é tratado como “aborrecente”, não é? Não tratamos o período da adolescência com o devido respeito. Deveríamos olhar a adolescência como uma fase de transição, um momento de bastante confusão. É um período difícil e contraditório, visto com preconceito pela sociedade.
Estigmatizamos a adolescência, que vira “aborrecência”, e daí, quando temos um processo de captura do adolescente no sistema penal, ele é mais violento, porque, desde o seu aprisionamento,o já é estigmatizado, é o “menor”, o menino do funk, o vagabundo etc.
Correio da Cidadania: Pode-se fazer uma analogia com, por exemplo, o patriarcado que vocês mencionaram anteriormente?
Camila Gibin: Pode-se sim. Costumo dizer – não só eu, mas outras pessoas que também estudam isso – que a nossa sociedade é machista, homofóbica, racista e “adultocêntrica”. O “adultocêntrico” é justamente isso: o ideal do “ser” da nossa sociedade é homem, heterossexual, branco e adulto, ou seja, não adianta ser nem adolescente e nem idoso. Existe uma dimensão de que o adulto é a centralidade e daí a relação do adulto com o adolescente acaba sendo mediada por muita violência. Esse é outro ponto importante de se colocar para entender como os adolescentes acabam sofrendo mais dentro da lógica do sistema penal.
Além disso, o tempo para um adolescente é diferente da dimensão de tempo para um adulto. Para um adulto, um mês passa rápido, para o adolescente um mês é uma eternidade. Acabamos não percebendo que encarcerar um adolescente durante nove meses, o que para um adulto representa pouca coisa, é muito tempo.
Para a dimensão psíquica e específica da condição de existência do adolescente, o tempo é muito importante, algo muito significativo. E é outro fator que explica por que as unidades prisionais de adolescentes são mais violentas se comparadas às dos adultos. Devido a todo o estigma da adolescência, acabamos vendo mais violações de direitos do que no sistema penal dos adultos.
Raphael Sanz é jornalista