“Não vamos deixar o agronegócio tomar o nosso país”
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- Tiago Miotto
- 15/09/2015
Quando perceberam que teriam de ser revistados pela polícia e enfrentar uma longa fila para adentrar na sessão solene em “homenagem” aos povos indígenas na Câmara dos Deputados, os representantes do povo Tupinambá, vindos do sul da Bahia, decidiram bater em retirada. “Uma casa, quando vai receber para uma sessão solene, não tem de humilhar ninguém dessa forma”, criticou Babau Tupinambá. Junto com seu povo, Babau negou-se a participar da solenidade ocorrida durante o 11º Acampamento Terra Livre (ATL)*, que aconteceu no mês de abril em Brasília.
Babau é cacique da aldeia de Serra do Padeiro, localizada na Terra Indígena (TI) Tupinambá de Olivença, no sul da Bahia. A Serra do Padeiro é uma das muitas comunidades indígenas que tiveram que buscar alternativas para sobreviver frente à violência cotidiana e à morosidade do Estado brasileiro.
Como outras comunidades, a exemplo dos Guarani Kaiowá (no Mato Grosso do Sul) e Kaingang (no Rio Grande do Sul), o povo Tupinambá cansou-se da marginalização e da miséria e partiu, em 2004, para a retomada de partes de seu território tradicional no interior da TI Tupinambá de Olivença, cujo processo demarcatório também iniciou naquele ano.
A delimitação da TI Tupinambá de Olivença – estimada em 47 mil hectares – foi concluída em 2009 e, desde então, aguarda a expedição da Portaria Declaratória do Ministério da Justiça, emperrada por decisões políticas do governo federal. Enquanto isso, a Polícia Federal e a Força Nacional de Segurança chegaram a ser enviadas para realizar ações de reintegração de posse contra os indígenas na área, o que resultou em diversos relatos de violações contra os indígenas.
Nesse processo, mais de vinte fazendas foram retomadas apenas na área da Serra do Padeiro, e muitas das áreas no interior do território indígena de Olivença, já reconhecido como tradicional do povo Tupinambá, encontram-se ainda sob a posse de não-índios e sob o poder de fazendeiros que não hesitam em contratar jagunços e comandar torturas, atentados e assassinatos contra os indígenas.
Durante o ATL, em Brasília, Babau Tupinambá, uma das lideranças ativas nesse processo de retomada, concedeu a entrevista a seguir, em que comenta alguns dos desdobramentos do acampamento que reuniu mais de 1500 indígenas de todo o Brasil durante quatro dias na Esplanada dos Ministérios.
A mobilização ocorreu num momento que é, talvez, o mais adverso enfrentado pelos povos indígenas desde a promulgação da Constituição de 1988. Por um lado, o governo Dilma – o que menos demarcou terras desde a redemocratização – mantém as demarcações paralisadas, por compromisso com a agenda do agronegócio. Por outro, a bancada ruralista avança com as tentativas de retirada de direitos dos povos indígenas, vistos como inimigos do agronegócio e limitadores da expansão das fronteiras agrícolas.
Dentre os projetos prioritários dos ruralistas, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC 215), que pretende passar do Executivo para o Legislativo a atribuição de demarcar terras indígenas, é o risco mais iminente de retrocesso. Enquanto isso, decisões recentes da Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) desconsideram as violações sofridas pelos indígenas durante a ditadura e aceitam recursos de fazendeiros para processos demarcatórios já concluídos.
Na entrevista, Babau também falou sobre a situação do povo Tupinambá, a relação com o Estado brasileiro e a prisão que sofreu em 2014, quando iria levar ao Papa Francisco, no Vaticano, um relatório denunciando as violações contra os direitos humanos sofridas pelos povos indígenas do Brasil. Na ocasião, Babau foi impedido de retirar seu visto e ficou sob custódia da Polícia Federal, em função de um mandado de prisão expedido dois meses antes pela Justiça da Bahia e motivado por uma denúncia de assassinato, a qual foi caracterizada por Babau como perseguição política.
Para se ter uma ideia da situação de insegurança e constante violência a que estes povos indígenas estão submetidos, vale lembrar que, desde a data em que a entrevista foi concedida, duas lideranças indígenas foram assassinadas na Bahia (entre elas, um Agente de Saúde Indígena do povo Tupinambá) e uma no Maranhão, além de um atentado com fogo que aconteceu contra uma comunidade Tupinambá, também na Bahia. A indignação e inquietação de Babau não são frutos do acaso.
Babau, em uma fala tua, tu comparaste a PEC 215 com a primeira lei colonial brasileira. Por quê?
Quando a coroa portuguesa chegou no Brasil, dividiu o território em capitanias hereditárias e, ao entregá-las aos donatários, junto veio uma lei, uma regra para que eles provassem que eram leais à coroa portuguesa: tinham por obrigação matar todos os índios Tupinambá que eles encontrassem dentro das capitanias. Ou seja, começou uma sequência de leis, de regras e políticas oficiais para matar e exterminar um povo.
A primeira (lei) foi taxativa e disse “mate”. Posteriormente, outras não dizem “mate”, nessas palavras, mas o efeito é o mesmo, pois vai expulsar da terra, vai tirar da terra, então, para nós, é a PEC da morte.
A ordem de Portugal era matar os Tupinambá para tomar terra, não é isso? E a PEC vai fazer o quê? Se não vai ter terra demarcada, se eles vão rever as terras demarcadas, logo, é a mesma lei, só mudaram o viés. Você não sabe que aqui no Brasil eles não chamam o cara de ladrão, chamam de corrupto e dizem que ele “fraudou” (ao invés de dizer que roubou)? A PEC assassina é a mesma coisa, só não diz a palavra “mate”, mas o efeito é o mesmo.
Quais seriam as consequências de uma aprovação desta PEC?
O povo brasileiro é um povo ordeiro, principalmente nós, índios. Mas não tem outro jeito a não ser ir para a guerra. Querendo ou não, os índios vão ter que formar guerrilha. Se é pra morrer, tem que morrer lutando, não sentado. Não vamos deixar tomarem o nosso país. Seja esse agronegócio, seja quem for. Nós, indígenas, temos a obrigação e o dever de defender a nossa vida e a existência dos animais e da floresta. Nós só existimos se isso existir. Se vão mexer, vão ter que mexer com a vida no todo e ainda vão tentar tirá-la.
No ano passado aconteceu uma situação contigo em que tu estavas indo levar um relatório para o Vaticano e acabou impedido de viajar pela Justiça. Pode contar tua versão do ocorrido?
É mais uma questão fraudulenta, das armações políticas desse país. Eu tirei o bendito passaporte em um dia em que nada constava na minha ficha. No dia seguinte, apareceram quatro mandados de prisão. E o último que ficou, inicialmente, era de eu ser assassino e tinha matado uma pessoa. Depois, se chegou à conclusão de que eu nem conhecia as pessoas. Como eu vou matar quem nem conheço e a mais de 60km da minha aldeia?
E por que tu achas que aconteceu essa armação para que fosse impedido de viajar? Estava levando algum relatório para o papa Francisco?
Alguns parlamentares indagaram: como podia eles, parlamentares, não serem convidados pelo papa, mas um cacique? Assim, não podiam deixar sair do país para difamar, coisas do tipo.
Eu não só levaria o relatório, mas falaria ao papa – e falei isso ao Marcelo Veigas, do Ministério da Justiça – de todas as atrocidades que acontecem aqui no Brasil com os povos indígenas do país inteiro, ia falar tudo. E uma hora dessas ainda vou falar.
Observando de maneira mais geral, como vê a situação dos povos indígenas no Brasil hoje?
A situação que vejo hoje é caótica, porque o povo reclama, mas muitos não querem agir. Um povo ou outro reage, mas não todos. Todos falam em agir, mas na prática estão ainda se segurando no Bolsa-Família. Precisa abandonar esse negócio. O índio tem de ir pra terra, produzir dentro da sua cultura, no regime cultural do seu povo, e sair dessa de ficar recebendo cesta básica, Bolsa Família, esquece isso.
Nosso povo é independente, um povo livre, não submisso a um recurso banal desse, de cesta básica. Tem que se livrar disso, ir para a luta e garantir o direito à vida da floresta, dos animais e de nós, índios.
Especificamente sobre os Tupinambá, qual é a situação de vocês hoje?
Nós, o povo Tupinambá, hoje estamos ocupando nosso território. Independentemente de demarcaram a terra e publicarem a portaria declaratória, ou não, o certo é que a gente expulsou os fazendeiros de dentro, e estamos lá, e para nos tirar vão ter que nos matar. Nós não temos o que fazer. Na questão histórica, estamos dentro de uma terra que foi o Ministério da Guerra que demarcou em 1926, de cinquenta léguas.
Agora, estamos apenas reivindicando, dentro dessa terra, 47 mil hectares e vemos a confusão toda. Nós não entendemos, mas sabemos que a terra é nossa, já assumimos, a aldeia Serra do Padeiro já assumiu toda a terra. Cabe ao governo indenizar àqueles que nós tiramos e publicar a portaria declaratória, fazer a sua parte, portanto. A nossa parte já fizemos, já ocupamos tudo.
Os Tupinambá foram um dos primeiros povos a entrar em contato com os colonizadores portugueses. Nesses mais de 500 anos de contato, na tua visão sobre a relação com o Estado brasileiro, o que mudou?
Nós, os Tupinambá, nunca conseguimos lidar com o Estado brasileiro. Como você viu, a primeira lei do país foi criada para matar Tupinambá. Os portugueses disseram: “olha, Tupinambá é inimigo da coroa. Mate”. Depois, mandaram: “todos os colonos que estiverem no país têm que, por lei, matar os Tupinambá”. E nós sobrevivemos.
Em muitos anos, os colonos nunca tiveram capacidade de guerrear com os Tupinambá; mandaram o exército, a polícia e continuam até hoje. Vê-se que a gente está lutando, mas fazendeiro nenhum nunca foi na terra Tupinambá. É a polícia que eles mandam. Portanto, o governo sempre foi o entrave para os Tupinambá.
Durante o Acampamento Terra Livre houve uma reunião com o deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ, presidente da Câmara dos Deputados), uma sessão na Câmara dos Deputados e outra no Senado. Qual a tua avaliação desses espaços e qual o saldo que fica deles para os povos indígenas?
Eu vejo saldo zero. Primeiro que é um enrolation, abrir a porta e sentar na mesa não significa que o outro te ama ou vai fazer o que você quer. É só enganação pra encher o ego do índio e dizer que esteve no Congresso. Por isso que nem lá eu fui. Com o Eduardo Cunha, foi uma reunião privada, onde pudemos falar olho a olho o que pensamos, e ele também falou, mas apenas solenidades. E o que nós temos de solene? 600 índios mortos, presos, torturados, violentados, duas terras indígenas julgadas pelo Supremo contrariamente a nós... O que nós temos? Lá eu não fui, não vou, se vamos é para falar de igual para igual, não para sentar como um cachorrinho abanando o rabo para quem quer matar o pobre cachorrinho. Isso não dá, nunca prestou e tem tudo para acabar mal para os povos indígenas.
O correto com essa multidão que estava acampada era dizer para o governo o que nós precisamos e queremos. E sabemos o que queremos: todos os nossos direitos sendo aplicados nesse país, que realmente eles mandem recurso para a Funai, criem um ministério para os povos indígenas atuarem, com um índio ministro, que aprove a lei do deputado Miranda (PEC 320, proposta pelo deputado federal Nilmário Miranda (PT-MG)), que nos dá direito a ter pelo menos cinco deputados federais aqui dentro. Aí, sim, dá autonomia, direito e pode-se entrar de igual para igual.
Agora, chegar na porta do Congresso, como você viu hoje, e ter mais de 600 policiais metendo a mão na bunda dos índios, e nas mulheres a mesma coisa? Nós, Tupinambá, da porta voltamos, não nos sujeitamos a uma humilhação dessas, porque uma casa, quando vai receber um convidado para uma sessão solene, não tem de humilhar o convidado. E se é a “casa do povo”, por que a polícia aparece primeiro? Portanto, achei tudo de ruim, principalmente os parentes terem se humilhado e aceitado uma coisa dessas.
Sobre o futuro, quais são, na tua visão, as perspectivas e o que acha que precisa para que os direitos dos povos indígenas se concretizem daqui para a frente?
Como Tupinambá, vejo um futuro bom, porque quando fica muito ruim todo mundo vai ter de reagir, e quando reage a coisa melhora. Porém, sem reação, só resta a morte. Se é assim, que todo mundo faça um caixãozinho, entre e seja enterrado logo. Como eu sei que ninguém vai ter coragem de se autoenterrar, acredito que o povo vai reagir e vai ficar tudo beleza, tudo bom para o futuro. Eu vejo lá no Rio Grande do Sul os parentes reagirem, estão nas terras, um povo que está sempre guerreando. Eu sei que vai continuar assim e eles não vão se deixar abater. Em quinhentos anos de luta não nos deixamos abater e não é agora que vamos deixar.
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Tiago Miotto é jornalista e redator da revista “O Viés”, de Santa Catarina. Foto: Lucio Bernardo Jr.
Entrevista originalmente publicada no site JornalismoB.