O governo Temer e seu congelamento de gastos: o fim do direito à saúde?
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- Paulo Spina e Francisco Mogadouro da Cunha
- 08/11/2016
A Constituição Federal de 1988 estabelece que “saúde é direito de todos e dever do Estado”, afirmação bastante significativa nos tempos em que tudo é mercadoria. Menos lembrada, mas não menos importante, é a continuação do mesmo artigo: “garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (artigo 196 da Constituição, grifo nosso).
Em outras palavras: pelo texto constitucional, não somente cabe ao poder público (Estado) garantir o acesso universal e igualitário ao sistema de saúde, mas também promover políticas sociais e econômicas que levem as pessoas a adoecer e sofrer menos.
A árdua construção do SUS
A Lei Orgânica da Saúde detalha esse ponto ao reconhecer que “os níveis de saúde expressam a organização social e econômica do país” e apontar alguns dos determinantes e condicionantes da saúde: “a alimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, a atividade física, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais” (Lei Federal 8.080/1990, artigo 3o).
Não foi por acaso que os parlamentares incluíram esses pontos na legislação: o reconhecimento do direito à saúde foi uma vitória do Movimento da Reforma Sanitária, como parte da mobilização pelo fim da ditadura. Assim, o povo brasileiro teria conquistado não somente o direito de ser atendido pelo Sistema Único de Saúde (SUS), mas também um suposto “Estado de Bem-Estar Social” que, por meio de direitos sociais, promoveria a saúde de todas as pessoas. Mais ainda: até as políticas econômicas deveriam ser voltadas para o bem-estar da população.
As décadas seguintes ao fim da ditadura têm sido duras para o SUS e para o direito à saúde. O suposto Estado de Bem-Estar Social não saiu do papel: boa parte da população brasileira continua sem alimentação adequada, sem moradia digna, sem saneamento básico, com transporte caro, perigoso e ineficaz… Isso só para falar nos quatro primeiros fatores.
Desde a criação no SUS, é inegável que foi bastante ampliado o acesso ao sistema de saúde, incluindo a população antes excluída por não ter emprego formal. Houve expansão importante da rede de atendimento e dos serviços não diretamente assistenciais, como os de Vigilância em Saúde (ambiental, epidemiológica e sanitária), que atendem toda a população de alguma forma.
No entanto, o sistema nunca teve seu financiamento garantido: o gasto público brasileiro em saúde é muito pequeno para um sistema pretensamente universal, e inferior inclusive ao de países cujos sistemas públicos abrangem apenas uma parcela específica da população (em geral os muito pobres).
Nenhum dos governos federais do período pós-ditadura priorizou a verdadeira universalização do SUS em termos orçamentários, e as “conquistas” de recursos foram reiteradamente sucedidas por derrotas que as neutralizaram: entrou a CPMF (1997), mas não aumentou o montante global; veio a Emenda Constitucional 29 (2000), mas não foi garantido o percentual de receita federal; a EC 29 foi regulamentada (2012), mas de forma insuficiente; fixou-se o percentual de receita federal (2015), mas também em valores baixos e com execução obrigatória de emendas parlamentares.
A vontade de destruir o SUS
Assim que chegou ao poder de forma provisória, o governo Temer já deu sinais de que aprofundaria o ataque aos direitos sociais, entre eles o direito à saúde. Ricardo Barros, ministro da Saúde, mal assumiu o cargo e já afirmou que “o tamanho do SUS precisa ser revisto” – entre outras declarações absurdas, como “os homens trabalham mais que as mulheres, por isso não acham tempo para cuidar da saúde”. O mesmo ministro Barros logo passou a defender a criação de “planos de saúde populares, com cobertura simplificada, para desafogar o SUS”.
Porém, como de costume, veio da área econômica do governo Temer o ataque aos direitos sociais que nenhum de seus antecessores ousou propor: a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 241, também chamada de PEC 55 desde que passou a tramitar no Senado Federal. Sob os argumentos do “rombo nas contas públicas” e da “necessidade de contenção de gastos”, a PEC pretende impor ao Brasil um regime inédito de congelamento de despesa pública, que nenhum país no mundo chegou a fazer com tal radicalidade.
O chamado Novo Regime Fiscal que a PEC pretende implementar nada mais é que o congelamento dos gastos do governo federal nos valores reais de 2016, que passariam a ser corrigidos somente pela inflação, pelos próximos vinte anos. Ou seja: nem mesmo em tempo de crescimento econômico o governo federal poderia aumentar seus gastos!
Os impactos dessa PEC para a Saúde foram estimados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), por meio da Nota Técnica 28, elaborada por Fabiola Sulpino Vieira e Rodrigo Pucci de Sá e Benevides. Apresentaremos aqui os pontos dessa análise que consideramos mais importantes, de forma sucinta e procurando evitar o “economês”.
A estupidez do congelamento
Em termos quantitativos, a perda de recursos federais destinados ao SUS foi estimada em R$ 654 bilhões de reais nesse período de 20 anos, em um cenário conservador (crescimento médio do PIB de 2% ao ano). Ao utilizar uma estimativa de crescimento maior (3% ao ano), a estimativa chega a R$ 1 trilhão. Ou seja: ao comparar a regra da PEC com a atual, quanto mais a economia brasileira crescer nesse período, maior a perda de recursos para a Saúde.
Vale lembrar que mesmo a regra atual está longe de garantir recursos suficientes para um sistema de saúde que se pretende universal. Ao contrário do discurso do ministro que acha o SUS “muito grande”, os pesquisadores do IPEA afirmam que o gasto público com saúde no Brasil é muito baixo: US$ 591 per capita em 2013, menor que o de países vizinhos que não têm sistemas universais (Chile, US$ 795; Argentina, US$ 1.167) e muito menor que o de países com sistemas universais (Reino Unido, US$ 2.766; França US$ 3.360).
Além disso, embora a Emenda Constitucional 29/2000 tenha provocado um aumento significativo dos gastos de estados e municípios com saúde, o gasto federal permanece estável com relação ao PIB (1,66% em 2000, 1,69% em 2015) e a participação desse gasto no total da despesa primária federal caiu no mesmo período: de 10,5% em 2002 a 8,6% em 2015. Uma aceleração dessa queda não poderá ser compensada por estados e municípios, diante do atual contexto de crise econômica.
Os pesquisadores do IPEA ainda chamam a atenção para o fato de que a população de idosos no Brasil deve dobrar entre 2016 e 2036, de 24,9 milhões para 48,9 milhões (12,1% a 21,5% do total). O impacto dessa mudança do perfil demográfico para o SUS é evidente: idosos adoecem mais e procuram mais os serviços de saúde, demandando também mais estrutura e insumos.
Em síntese, nas palavras dos autores da Nota Técnica:
“Congelar o gasto em valores de 2016, por vinte anos, parte do pressuposto equivocado de que os recursos públicos para a saúde já estão em níveis adequados para a garantia do acesso aos bens e serviços de saúde, e que a melhoria dos serviços se resolveria a partir de ganhos de eficiência na aplicação dos recursos existentes. Ademais, o congelamento não garantirá sequer o mesmo grau de acesso e qualidade dos bens e serviços à população brasileira ao longo desse período, uma vez que a população aumentará e envelhecerá de forma acelerada” (NT 28, Considerações Finais).
Trata-se, portanto, de uma “revogação branca” das disposições constitucionais que tratam do direito à saúde e dos demais direitos sociais garantidos pelo Estado. Na prática, é como se o artigo 196 da Constituição Federal passasse a vigorar com as seguintes ressalvas:
“¶1o – Até 2036, as políticas e os serviços de que trata este artigo devem funcionar com o orçamento de 2016, sendo vedado qualquer aumento, ainda que a população envelheça ou os insumos fiquem mais caros;
¶2o – Diante da restrição orçamentária, o acesso ao SUS deixa de ser universal e integral, ficando restrito à população extremamente pobre e às doenças cujo tratamento for de baixo custo”.
Fim de todo o pacto social
Como o regime que a PEC pretende implantar não atinge somente a Saúde, é de se esperar que a asfixia financeira afete também as demais políticas públicas, já tão precárias: menos educação, menos assistência social, menos previdência, menos habitação, menos transporte, menos fiscalização do trabalho escravo, menos reforma agrária… Em síntese: teremos uma sociedade ainda mais produtora de adoecimento e de sofrimento, principalmente para os setores mais pobres da classe trabalhadora – e um SUS cada vez menor para dar resposta a essa demanda.
Em entrevista recente, o presidente da Câmara dos Deputados (Rodrigo Maia, aliado de Michel Temer) rebateu as críticas à PEC afirmando que, com uma retomada do crescimento em decorrência da aprovação da proposta, as famílias teriam maior renda e assim poderiam “entrar na saúde privada e na educação privada”. Além de aumentar a parcela do orçamento destinada aos juros da dívida pública, é esse o projeto que está por trás da PEC: ampliar o mercado privado, avançando na mercantilização de direitos como saúde e educação.
É tarefa de todos que acreditam no SUS originalmente concebido e na concepção ampliada de direito à saúde denunciar publicamente as consequências da PEC e pressionar por sua rejeição pelo Senado. Queremos acreditar que ainda seja possível impedir sua aprovação, com a mobilização que tem tomado principalmente as escolas e universidades nas últimas semanas. Se isso não acontecer, a PEC será promulgada logo após a segunda votação pelos senadores, com efeito já para 2017.
Na hipótese infelizmente provável da aprovação, não baixemos as cabeças nem as bandeiras: precisamos nos reorganizar e lutar as próximas batalhas. Nenhuma PEC é irrevogável, e a correlação de forças pode mudar quando as consequências práticas do Novo Regime Fiscal vierem à tona. Vamos à luta!
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Francisco Mogadouro da Cunha é médico, militante da Frente Nacional Contra a Privatização da Saúde e do PSOL.
Paulo Spina é militante do Fórum Popular de Saúde do Estado de São Paulo e do PSOL.
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