Chacina em Campinas: o que 12 pessoas brutalmente assassinadas não param de nos perguntar?
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- Mariana Conti
- 28/01/2014
Oh senhor cidadão,
eu quero saber, eu quero saber
com quantos quilos de medo,
com quantos quilos de medo
se faz uma tradição?
Oh senhor cidadão,
eu quero saber, eu quero saber
com quantas mortes no peito,
com quantas mortes no peito
se faz a seriedade?
(Tom Zé – Senhor Cidadão)
Na noite de 12 de janeiro, a cidade de Campinas foi chacoalhada com a notícia de que 12 pessoas foram mortas na periferia da cidade. Segundo alguns setores da mídia, a motivação da chacina é a vingança promovida por um grupo de extermínio militar pela morte de um policial em um posto de gasolina do bairro Ouro Verde. No entanto, alguns moradores e familiares denunciam a ação de extermínio como um “bode expiatório” forjado para justificar ações de ódio social.
A morte de um policial, que reagiu a um assalto, sem sombra de dúvidas nos comove e nos faz pensar, mais uma vez, na insegurança que toma conta da vida das pessoas em todos os espaços da sociedade. No entanto, o que também causa espanto é a reduzidíssima repercussão nos meios de comunicação dada a uma chacina de tal envergadura.
Afinal, são 12 pessoas mortas, todas em bairros muito próximos, com boa parte das famílias indicando o envolvimento policial no extermínio. Estamos falando, portanto, de algo como a chacina de Vigário Geral e da Candelária. Terá a sociedade se tornado insensível a um acontecimento como este?
Muito provavelmente, os últimos anos foram de naturalização do perigoso discurso de que “bandido se mata é na bala” ou de que “é preciso fazer justiça com as próprias mãos”. Pois para quem sofre cotidianamente com a violência nas ruas, ou aos programas sensacionalistas de “investigação policial”, é fácil justificar a incapacidade do Estado no quesito segurança pensando na Lei de Talião do “olho por olho e dente por dente”.
Mas a incapacidade do Estado em lidar com a violência crescente está justamente no fato de que a única resposta que tem sido buscada é a da militarização. Qualquer leitor minimamente empenhado poderá fazer uma busca na internet e encontrar uma série de documentos e reportagens evidenciando o treinamento desumano a que são submetidos policiais em formação. Muitos deles já acusaram abusos na hierarquia militar e são estimulados a utilizar armas letais como um recurso comum, o que as torna muitas vezes uma extensão de egos exaltados, de chantagens, subornos ou instrumentos de praxe em reintegrações de posse ou manifestações pacíficas de rua. Isso sem contar a política de extermínio periódica a que são submetidos negros e pobres nas periferias, presídios e áreas socialmente degradadas. Os números, segundo a organização Mães de Maio, indicam pelo menos duas chacinas por ano protagonizadas por policiais em diferentes regiões do Brasil.
Tudo isso aparece em notícias aqui e ali, camufladas ou ignoradas por boa parte dos meios de comunicação. No entanto, a partir de junho do ano passado, tais abusos começaram a ganhar destaque quando estudantes, jornalistas e artistas sofreram com agressão policial desmedida em protestos pacíficos de rua. Apenas ficou explícito o que muitos moradores de favela já sofriam com as ações desumanas e corruptas do BOPE (postas com veracidade no filme Tropa de Elite 2), da Rota (conhecida mundialmente como a polícia que mais mata) ou de ações de policiais à paisana abusando de mulheres e jovens.
Um levantamento do Núcleo de Estudos da Violência da USP mostra que de 1990 a 2010, mais de 11 mil pessoas foram vítimas da violência policial só no estado de São Paulo (para não falar dos casos de agressão não oficializados). E a situação chegou a tal ponto que o próprio Conselho de Direitos Humanos da ONU recomendou o fim da polícia militar no Brasil. A essa altura já se torna óbvia a pergunta: as táticas brutais e violentas da polícia militar reduziram os casos de violência urbana da ditadura militar até os dias de hoje? Qualquer um será capaz de perceber que não.
Por isso, por mais que muitos possam se recolher em suas casas com a sensação de segurança por imaginar que um policial está atento, de arma em punho, pronto para “matar os bandidos”, a questão é que esse procedimento apenas alimenta o ódio social e se torna motor de injustiças, sobretudo nas periferias. Afinal, como esquecer o capitão da polícia militar de Campinas, Ubiratan de Carvalho, afastado do cargo por enviar ofício aos policiais recomendando a abordagem de “indivíduos da cor parda e negra” na cidade? Um procedimento como este, levado a cabo (ainda que informalmente) por muitos “agentes da segurança”, é um prato cheio para abusos de poder na periferia. Poderá a população desses bairros se sentir segura com uma instituição que tem pobres e negros enquadrados em seu perfil suspeito? Não seria este o perfil étnico e social da maioria da sociedade brasileira? Somos então todos suspeitos?
Por isso, o caso da chacina de Campinas deve ser investigado até o fim. E mais: deve servir como um caso limite para um debate público na sociedade sobre a necessidade da desmilitarização policial. As famílias das vítimas seguem angustiadas por justiça, e muitas delas intimidadas por temer qualquer retaliação. E a maioria delas já sabe, pelo silencioso e duro ensinamento da nossa época, que o julgamento justo tarda ou nunca vem. MC Daleste (por ser funkeiro), Amarildo (por ser pedreiro da favela da Rocinha), os craqueiros da Cracolândia (por serem drogados, sem oportunidade e sem recursos) e os jovens do “Rolezinho” (por serem negros, moradores da periferia, a entrar em ambiente “inapropriado”) seguem sendo vítimas brutais, a clamar por justiça.
Se muitos dos jovens assassinados enquadravam-se no perfil que a polícia há tempos perseguia (alguns eram traficantes, outros já tinham ficha criminal), isso não justifica uma ação de extermínio de tal magnitude. Além disso, se os envolvidos na chacina já conheciam os “pontos de tráfico” onde tais jovens foram mortos (segundo apontam algumas notícias), por que a ação policial nesses locais não foi feita com base em inteligência de segurança? Ao invés de extermínio motivado pela vingança policial, não poderia ser também essa uma ação premeditada, à espera de um bode expiatório? Por que matar pessoas que muito provavelmente não tinham nenhuma relação com a morte do policial no posto de gasolina? Que direito um grupo de policiais tem de usar uma arma e decidir quem vive e quem morre? Você se sente seguro dessa maneira?
Nada justifica o terror que muitos continuam passando na região. Algumas famílias dizem que depois do extermínio os toques de recolher se tornaram frequentes e as abordagens injustificadas pela rua uma prática diária. A cultura do medo e da truculência já mostrou sua ineficiência de norte a sul do país e nos bairros onde os jovens foram mortos parecem funcionar como um “sossega leão”.
Não se constrói justiça com balas na cabeça e com prisões abarrotadas de presidiários (como que a cultivar entre eles o ódio e deixando de lado um verdadeiro processo pedagógico de reintegração social). Defender tais absurdos é fechar os olhos para o grande problema, que só beneficia a quem curiosamente defende a ação violenta da polícia nas revistas e telejornais. Ou alguém acha que o sucateamento da saúde, da educação pública e a falta de opções culturais decentes tornam um indivíduo melhor? Os 12 mortos da Chacina de Campinas, moradores de regiões periféricas e carentes de infraestrutura pública de qualidade, não cansam de nos fazer essas perguntas.
Mariana Conti é socióloga, mestranda em sociologia na Unicamp, funcionária pública e membro do Diretório Municipal do PSOL em Campinas-SP.
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