Ferrogrão: apatia, morosidade e equívocos marcam início da agenda ambiental do governo Lula
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- Patricia Fachin, IHU
- 26/09/2023
"Já estamos no nono mês do novo governo e vejo o discurso ser mais importante que as tomadas de providências". A declaração é da ativista ambiental Telma Monteiro, que há décadas acompanha os projetos de infraestrutura do Estado brasileiro no país, especialmente na Amazônia. Um exemplo disso, destaca, é a “apatia com relação aos problemas que a Amazônia enfrenta”, expressa na Cúpula da Amazônia, quando oito chefes de Estado dos países amazônicos discutiram o futuro da região.
Em entrevista concedida ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Telma afirma que “embora a escolha de Marina Silva e Sonia Guajajara tenha sinalizado uma preocupação com as questões ambientais e indígenas, existe uma morosidade nas tomadas de decisões. Não vemos, por exemplo, um avanço nas discussões sobre a proteção dos Yanomami que continuam sendo alvos dos ataques do garimpo, dos traficantes de drogas e armas”.
Outros pontos polêmicos da agenda ambiental na atual conjuntura, observa, são a retomada de projetos hidrelétricos na Amazônia e a construção da ferrovia Ferrogrão, cujo percurso vai de Sinop, no Mato Grosso, até o porto de Miritituba (Itaituba), no rio Tapajós, no Pará. “A Ferrogrão sempre foi importante para o governo, tanto o atual como o anterior, do ponto de vista de obras de infraestrutura ou da política. A maior obra prevista na Amazônia, ou no Brasil, pelo governo federal é a Ferrogrão. Temos também que considerar os interesses que ministros como os da Fazenda, dos Transportes, da Agricultura, e a bancada ruralista no Congresso têm em fazer sair do papel uma ferrovia que atenda aos interesses desses setores, mesmo que ela leve 30 anos para ser construída e custe mais de R$ 30 bilhões”, afirma.
E acrescenta: “O governo Lula está equivocado em vários aspectos. Há um ranço nos discursos do presidente e um despreparo da equipe em relação ao que encontraram e aos problemas que eles terão de enfrentar daqui para frente. A sociedade esperava muito mais do que estão nos oferecendo, em especial nas questões que envolvem o meio ambiente, clima e povos originários”.
Telma Monteiro (Foto: Arquivo Pessoal)
Telma Monteiro é ativista ambiental e pesquisadora independente, especialista em análise de processos de licenciamento ambiental. Seu trabalho é marcado pelo acompanhamento rigoroso e, amparado nos próprios estudos técnicos oficiais, permite acompanhar inúmeras discussões sobre os projetos de infraestrutura em curso na Amazônia.
Confira a entrevista completa.
IHU: Em que consiste o projeto hidrelétrico para a construção da hidrelétrica binacional Brasil-Bolívia, no rio Madeira, na Amazônia? De quem é a proposta, por quais razões o projeto é proposto e quais estimam-se que sejam suas implicações?
Telma Monteiro: Ainda na fase de estudos, o objetivo real do projeto é a construção de hidrelétricas nas bacias dos rios Madeira, Beni e seus afluentes, em territórios brasileiro e boliviano, para produzir energia elétrica. Os estudos também incluem a possibilidade de criação de hidrovia e linha de transmissão. Nessa região estão situadas três grandes Terras Indígenas que serão afetadas: a TI Lage, a TI Ribeirão e a TI Uru-Eu-Wau-Wau.
(Foto: Geotecnologias na Rede)
Essa primeira hidrelétrica binacional planejada no rio Madeira/Beni (Brasil/Bolívia, respectivamente), na Amazônia, pretende gerar 3.772 MW. Se construída, impactará diretamente em territórios boliviano e brasileiro para enviar energia elétrica ao sul do Brasil. O estudo “Interligação Brasil-Bolívia: desenvolvimento de usinas hidrelétricas na Bolívia voltadas à exportação”, de 2022, é financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID e recomenda a instalação, também, de uma linha de transmissão de alta tensão.
Tanto o BID quanto o Banco de Desenvolvimento da América Latina – CAF têm o objetivo de consolidar um conjunto de fundos internacionais para, em teoria, desenvolver e proteger a Amazônia. A Eletrobras, empresa de capital aberto brasileira, a CAF, a Empresa Nacional de Electricidad Bolivia (ENDE Corporación Boliviana) e a Worley Parsons, desenvolvedora dos estudos de inventário do complexo hidrelétrico, aproveitaram a semana da Cúpula da Amazônia para apresentar o projeto em Guayaramerin, na Bolívia, e em Guajará-Mirim, no Brasil.
Será preciso, aqui, fazer uma retrospectiva do momento em que surgiu esse projeto no bojo de um conjunto maior na bacia do rio Madeira, Complexo do rio Madeira. Nesse conjunto constavam as duas hidrelétricas, em Porto Velho/RO, agora já construídas, Santo Antônio e Jirau; duas eclusas; um sistema de transmissão, também já construído, de 2.450 km, de Porto Velho até Araraquara/SP; e duas hidrelétricas binacionais – Brasil, no rio Madeira, e Bolívia, no rio Beni.
No primeiro mandato do governo Lula (2003 a 2007), tivemos de lutar contra os projetos de infraestrutura na Amazônia, que começaram com o processo de licenciamento das hidrelétricas no rio Madeira: Santo Antônio e Jirau. Em 2009, no segundo mandato de Lula, uma delegação representando a Bolívia e o Brasil foi a Washington para denunciar na Comissão de Direitos Humanos, na Organização dos Estados Americanos – OEA, os impactos que o represamento do rio Madeira provocaria em terras ribeirinhas bolivianas e brasileiras, na reprodução dos peixes, nos riscos de inundação a montante da hidrelétrica de Jirau, em terras indígenas e nos grupos de índios isolados, além dos impactos em terras bolivianas.
As populações que residem às margens do rio Madeira vivem, hoje, os graves efeitos [desses projetos] em suas vidas, as variações do ciclo das águas, a dificuldade da migração dos peixes e os graves impactos criados com a elevação do nível do rio. A história: para consolidar uma resistência à privatização proposta pelo governo Fernando Henrique Cardoso, em 2001, Furnas se uniu à Odebrecht para criar um negócio lucrativo, pois havia, à época, uma ameaça de apagão no Brasil. Assim, para a Odebrecht era um novo e lucrativo negócio a ser implementado nos grandes rios Amazônicos que ainda não estavam barrados por hidrelétricas. Em 2001, foram realizados os Estudos de Inventário do rio Madeira por Furnas e Odebrecht.
Em 2002, esses estudos foram aprovados pela Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL e apresentados em inúmeros eventos e órgãos