Correio da Cidadania

Abaixo a ditadura!

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Os idos de 64 vão se dis­tan­ci­ando no tempo e a di­ta­dura ali ges­tada, até para aqueles que so­freram na carne a sua tru­cu­lência, vai ad­qui­rindo a feição ine­vi­tável de um “ob­jeto da his­tória”.  No en­tanto, per­cor­rido meio sé­culo, ob­serva-se uma sú­bita re­a­ti­vação, nos fluxos da me­mória co­le­tiva, da crô­nica apai­xo­nada sobre os acon­te­ci­mentos que com­pu­seram aquela “pá­gina in­feliz da nossa his­tória”.

Em tal fato, cu­rioso e pa­ra­doxal, o re­torno ao pas­sado se re­a­liza como de­manda do pre­sente, agora mar­cado pela ir­rupção de­sor­de­nada de um novo “fim de ciclo”.  A data re­donda pro­picia re­fle­xões. Sobre o sen­tido do que houve no pe­ríodo das trevas e, prin­ci­pal­mente, sobre a ma­triz au­to­ri­tária que se­guiu ativa nas con­jun­turas sub­se­quentes. Afinal, é im­pos­sível se afastar de uma “pá­gina” que não foi vi­rada.

O golpe de l964 não foi uma sim­ples quar­te­lada. E a di­ta­dura que ele sus­citou não foi uma ex­pe­ri­ência que possa ser en­cer­rada entre pa­rên­tesis. A do­mi­nação pro­lon­gada dos mi­li­tares sobre a po­lí­tica de­correu da se­cular tra­dição au­to­ri­tária que a pre­cedeu e, ao mesmo tempo, de­sen­ca­deou pro­cessos que não acabam quando ela ter­mina.

O “cons­tructo” au­to­ri­tário de 64 foi ex­pressão de uma ma­triz que con­tinua viva. Assim como con­tinua vivo, no polo oposto, o con­tra­ponto ra­dical da re­sis­tência de­mo­crá­tica ao au­to­ri­ta­rismo. São duas re­a­li­dades que, de certa forma, con­ti­nuam pre­sentes ainda hoje. So­bre­vi­vên­cias. Es­pi­nhos cra­vados na fe­rida mal ci­ca­tri­zada. Ca­madas ge­o­ló­gicas da for­mação po­lí­tica bra­si­leira.

As rup­turas na “noite veloz”

A pri­meira di­mensão desta so­bre­vi­vência diz res­peito ao im­pacto es­tru­tural pro­du­zido pelo re­gime au­to­ri­tário. Ele emerge como mera re­ação po­lí­tica contra as de­mandas por re­formas de base, mas só se afirma e dura lon­ga­mente na me­dida em que se con­fi­gura como um pro­jeto para o Brasil. O pro­jeto do “Brasil Grande Po­tência”, a mo­der­ni­zação au­to­ri­tária pro­ta­go­ni­zada pelos mi­li­tares, mexeu pro­fun­da­mente na es­tru­tura do país real. As mu­danças ocor­ridas “dentro da noite veloz” al­te­raram a es­cala da eco­nomia e o perfil da nossa so­ci­e­dade.

A di­ta­dura, ao seu modo torto, pro­duziu rup­turas e de­sen­ca­deou sig­ni­fi­ca­tivas al­te­ra­ções es­tru­tu­rais. Altas taxas de cres­ci­mento, ex­pansão do pro­duto in­dus­trial, am­pli­ação da malha viária, mu­danças na es­tru­tura do em­prego, for­ta­le­ci­mento do mo­no­pólio es­tatal na in­fra­es­tru­tura de ser­viços bá­sicos, nas áreas das te­le­co­mu­ni­ca­ções, energia elé­trica, com­bus­tí­veis. Em de­cor­rência, pa­tro­cinou uma ace­le­rada ur­ba­ni­zação que pro­vocou, em curto es­paço de tempo, um imenso des­lo­ca­mento de massas hu­manas, de uma ordem de gran­deza pouco comum nos pe­ríodos nor­mais da his­tória.

Uma res­tau­ração gi­gan­tesca que, re­a­li­zada no in­te­rior da ca­misa de força do au­to­ri­ta­rismo tec­no­crá­tico-mi­litar, re­pro­duziu de forma am­pliada o do­mínio oli­gár­quico e, com ele, o agra­va­mento de todos os nossos grandes pro­blemas so­ciais. A mo­der­ni­zação au­to­ri­tária pro­vocou uma me­ta­mor­fose que acen­tuou, am­pli­ando o seu grau de com­ple­xi­dade, o quebra-ca­beças de peças de­sen­con­tradas da po­lí­tica bra­si­leira.  Muitas es­tru­turas em­pre­sa­riais e apa­ratos de poder, que es­ti­veram no cerne da mo­der­ni­zação au­to­ri­tária e so­bre­vi­veram a ela, ad­qui­riram feição ma­dura no con­texto da co­la­bo­ração es­treita com o re­gime mi­litar. De­pois, con­se­guiram tran­sitar para o pe­ríodo pós-di­ta­to­rial apa­gando as marcas mais evi­dentes deste pe­cado ori­ginal.

Tais es­tru­turas se­guem atu­antes em vá­rias áreas. Nos anéis tecno-bu­ro­crá­ticos que ar­ti­culam as ala­vancas de poder po­lí­tico com os pontos fortes do poder pri­vado, nas grandes em­prei­teiras, no agro­ne­gócio, no sis­tema fi­nan­ceiro, na in­dús­tria cul­tural de massas, nas forças ar­madas, nas po­lí­cias. Nunca se con­se­guiu, por exemplo, des­mi­li­ta­rizar as po­lí­cias, que con­ti­nuam es­pan­cando a de­mo­cracia no es­paço livre das ruas e ma­tando Ama­rildos na ca­lada da noite.

Outro exemplo é o cerne te­le­vi­sivo da mídia grande. Com seu sun­tuoso pa­drão global ge­rado no ventre da di­ta­dura, opera fora de qual­quer con­trole de­mo­crá­tico e ma­ni­pula mais do que in­forma. Cada qual destas es­tru­turas ex­pe­ri­mentou um tipo par­ti­cular de adap­tação ao novo quadro po­lí­tico. Todas, no en­tanto, car­regam o au­to­ri­ta­rismo como pro­pri­e­dade cons­ti­tu­tiva do seu pró­prio ser.

A vi­ta­li­dade do prin­cípio-es­pe­rança

Mas há, também, so­bre­vi­vên­cias de outro tipo, no con­tra­ponto sal­ví­fico da re­sis­tência de­mo­crá­tica. O re­gime mi­litar foi ponto cul­mi­nante da tra­dição au­to­ri­tária do Es­tado bra­si­leiro. A ci­da­dania, afas­tada do grande de­bate po­lí­tico e acos­sada na livre ma­ni­fes­tação de seus an­seios, se viu obri­gada a re­tro­ceder até os li­mites mais ele­men­tares do te­cido so­ci­e­tário. Esse recuo com­pul­sório ter­minou por se cons­ti­tuir em es­paço de muitas des­co­bertas. Nele, a so­ci­e­dade civil de­sar­ti­cu­lada e “ge­la­ti­nosa” se per­cebe como re­verso do au­to­ri­ta­rismo. A partir deste ponto, co­meça um pro­cesso no qual se res­gata o sen­tido da cons­trução de ins­tru­mentos de au­to­a­fir­mação de uma so­ci­e­dade civil re­no­vada.

A re­or­ga­ni­zação da so­ci­e­dade civil, neste quadro, se deu em torno de va­lores mar­cados pelo re­chaço vis­ceral ao au­to­ri­ta­rismo. Não foi ca­sual que os novos mo­vi­mentos so­ciais te­nham sur­gido "de costas para o Es­tado e longe do Par­la­mento”.  Ainda quando em­bri­o­ná­rios, tais mo­vi­mentos se cons­ti­tuíram como agentes ativos das pro­messas de mu­dança, do­tados de alto poder de con­tágio. Como por­ta­dores de muitas vir­tu­a­li­dades, o plu­ra­lismo, a trans­pa­rência e a au­to­nomia com re­lação ao Es­tado e aos par­tidos po­lí­ticos, todos em choque aberto, não apenas com o con­creto da di­ta­dura, mas, igual­mente, com a ar­rai­gada tra­dição au­to­ri­tária da so­ci­e­dade bra­si­leira.

Os novos agentes so­ciais sub­ver­sivos, aos poucos, pas­saram da ne­gação e re­sis­tência para o im­pulso po­si­tivo que pro­jetou sua in­fluência sobre o con­junto das prá­ticas po­lí­ticas.  O sin­di­ca­lismo, por certo tempo, se re­novou a partir das co­mis­sões de fá­brica. As as­so­ci­a­ções de mo­ra­dores se or­ga­ni­zaram a partir da pra­cinha e ad­ja­cên­cias, re­ve­lando di­men­sões novas da ci­da­dania. O fe­mi­nismo deu os ares de sua graça, como ex­pressão de uma pre­sença dis­tinta da mu­lher na so­ci­e­dade. As as­so­ci­a­ções de do­centes pro­vo­caram me­ta­mor­foses na es­tru­tura de poder no in­te­rior das uni­ver­si­dades. Um surto de as­so­ci­a­ti­vismo, cul­tural, eco­ló­gico, anti-dis­cri­mi­na­tório, de luta por di­reitos dos sem-teto, sem-terra e tantos ou­tros. Enfim, uma mi­ríade de novos mo­vi­mentos de va­riada na­tu­reza que re­con­fi­gu­raram a mor­fo­logia da es­tru­tura so­cial bra­si­leira.

Para além das en­ti­dades novas, cuja lista pode ser in­ter­mi­nável, o im­pulso re­no­vador se pro­jetou também sobre as es­tru­turas pre­va­le­centes da so­ci­e­dade. Os ci­en­tistas da SBPC, os leigos das Co­mu­ni­dades Ecle­siais de Base e os bispos da CNBB, os ad­vo­gados da OAB e os jor­na­listas da ABI, além das si­glas que se tor­naram lu­mi­nosas na luta de re­sis­tência de­mo­crá­tica, foram ex­pressão con­creta da cha­mada "po­li­ti­zação das es­tru­turas in­ter­me­diá­rias de poder".

Foi de tal monta o im­pacto deste con­junto de lutas que, com o es­go­ta­mento do re­gime au­to­ri­tário, mudou o eixo do de­bate sobe a questão de­mo­crá­tica.  De­mo­cracia de massas, de­mo­cracia di­reta, de­mo­cracia de base, lei­turas di­fe­rentes para um mesmo fenô­meno: a emer­gência do que se chamou, na época, de “nova ci­da­dania”. No bojo da re­sis­tência de­mo­crá­tica, a cons­trução de an­tí­dotos ao au­to­ri­ta­rismo em geral também pros­perou “dentro da noite veloz”.

A “tran­sição in­tran­si­tiva” e a “ci­da­dania de­sen­car­nada”

A pré-his­tória da cha­mada tran­sição de­mo­crá­tica foi o pro­jeto de li­be­ra­li­zação do pró­prio re­gime mi­litar. Boa parte da agenda de mu­danças (anistia, al­te­ra­ções na cen­sura, plu­ri­par­ti­da­rismo, elei­ções di­retas para go­ver­nador) foi con­quis­tada ainda du­rante a vi­gência da di­ta­dura. Di­ante das pres­sões da so­ci­e­dade, o pro­jeto de aber­tura “lenta, gra­dual, porém se­gura", ao mesmo tempo em que al­me­java a so­bre­vida do “cons­tructo” au­to­ri­tário, abriu es­paços para a re­ar­ti­cu­lação das elites do­mi­nantes, sempre ver­sadas na arte de con­trolar a partir de cima os pro­cessos de mu­dança.

O mo­vi­mento das "Di­retas-Já", com suas gi­gan­tescas ma­ni­fes­ta­ções de massas, apressou a der­ro­cada da di­ta­dura e con­duziu o quadro po­lí­tico para um pa­tamar novo.  A emenda das di­retas, no en­tanto, foi der­ro­tada no Con­gresso. As di­retas não foram “já”, assim como a anistia não foi "ampla, geral e ir­res­trita".  O vetor re­sul­tante foi a es­colha in­di­reta de Tan­credo Neves, que, por sua vez, ago­nizou e morreu antes da posse. Com isso, a ampla co­a­lizão de veto ao re­gime mi­litar foi he­ge­mo­ni­zada, no go­verno Sarney, pela Ali­ança De­mo­crá­tica, no cerne da qual se ar­ti­cu­lavam os se­tores mais mo­de­rados da opo­sição e os seg­mentos recém-des­co­lados do campo di­ta­to­rial.

Esse hiato entre o im­pulso ge­rador da nova con­jun­tura e a so­lução ne­go­ciada que pre­va­leceu ter­minou por apri­si­onar o novo quadro à mesma ló­gica da si­tu­ação an­te­rior.  A subs­ti­tuição da aber­tura “lenta e gra­dual” da di­ta­dura pelo pro­jeto da Ali­ança De­mo­crá­tica re­a­firma o pa­drão con­ser­vador da mu­dança con­tro­lada de cima. Ou seja, o re­ar­ranjo no in­te­rior das elites foi o que de­finiu o perfil da cha­mada "Nova Re­pú­blica". Como o es­pí­rito da “nova ci­da­dania” não lo­grou se apossar, em ple­ni­tude, do corpo po­lí­tico da tran­sição, a po­la­ri­zação mu­dança-per­ma­nência con­ti­nuará re­me­tida para além da linha do ho­ri­zonte. A luta por mu­dança so­bre­vive nas de­mandas ir­re­a­li­zadas, e a tran­sição se le­gi­tima a tí­tulo pre­cário pela exe­cução de mu­danças par­ciais.

A di­ta­dura foi afas­tada como pre­sença fí­sica. Houve uma adesão re­pen­tina e ge­ne­ra­li­zada à “nova ordem”. A má­xima clás­sica de Lam­pe­dusa (“para que tudo fique como está é pre­ciso que tudo mude”) ori­entou a con­versão sú­bita de an­tigos sus­ten­tá­culos da di­ta­dura.  Todos pas­saram a ser, da noite paro dia, de­mo­cratas desde cri­an­cinha.  Como o "outro" da tran­sição deixou de se fazer vi­sível, todos são por ela, o jogo da po­lí­tica volta a ter suas cartas em­ba­ra­lhadas. A As­sem­bleia Cons­ti­tuinte, a grande mi­ragem que es­taria des­ti­nada a passar o Brasil a limpo, foi con­vo­cada. Mas, no im­bró­glio da tran­sição ne­go­ciada “de cima”, ela não foi ex­clu­siva. Elegeu-se, numa mescla com a es­colha dos novos go­ver­na­dores, um Con­gresso or­di­nário com fun­ções cons­ti­tuintes.  A nova Cons­ti­tuição foi es­crita com "ódio e nojo da di­ta­dura", mas o Brasil con­ti­nuou no ras­cunho.

A forte pre­sença de um de­sejo de mu­dança não lo­grou fe­char o cir­cuito de uma mu­dança qua­li­ta­tiva no quadro da po­lí­tica. A de­manda por de­mo­cra­ti­zação subs­tan­tiva da so­ci­e­dade não con­se­guiu se apro­priar dos apa­re­lhos po­lí­ticos do Es­tado. Com isso, a tran­sição se de­finiu como "in­tran­si­tiva" e seu ponto de che­gada, re­me­tido para além da linha do ho­ri­zonte, é uma ma­ra­tona sem fim. A “nova ci­da­dania”, que foi pro­ta­go­nista de acon­te­ci­mentos gran­di­osos, en­ve­lhece aos poucos como uma re­a­li­dade apenas vir­tual. Uma es­pécie de es­pí­rito de­sen­car­nado. Opera por surtos, com­bina ful­gu­ra­ções e fugas, mas não con­segue lugar no corpo de­gra­dado da po­lí­tica.

Na “ir­rupção con­tes­ta­tória” de junho do ano pas­sado, a pre­sença mas­siva do povo nas ruas voltou a as­sustar os “donos do poder”.  A as­pi­ração di­fusa por mu­dança, na forma de um fan­tasma ame­a­çador, re­co­loca o de­bate da po­lí­tica sob o signo da in­cer­teza.  Neste quadro, a data re­donda, meio sé­culo de uma “vi­agem re­donda”, atu­a­liza a re­flexão sobre o con­flito entre au­to­ri­ta­rismo de ma­triz oli­gár­quica e pre­sença ativa do povo po­lí­tica. O pa­drão de mu­dança que res­taura o do­mínio das oli­gar­quias, que gerou a di­ta­dura e, de­pois, apri­si­onou tu­canos e pe­tistas na ló­gica con­ser­va­dora, volta a ser re­posta como questão es­sen­cial pelas de­mandas do pre­sente. E é, também, uma das ra­zões do re­torno apai­xo­nado aos idos de março e aos acon­te­ci­mentos que mar­caram os tempos do “Abaixo a Di­ta­dura!”.

Léo Lince é so­ció­logo.

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