Correio da Cidadania

A direita que o ultraliberalismo e o neoextrativismo ungem

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Melo venceu nas dez zonas eleitorais de Porto Alegre, com | Política
Se­bas­tião Melo le­vanta um "chi­nelão" para co­me­morar sua vi­tória no pri­meiro turno, em gesto alu­sivo à de­no­mi­nação que lhe foi dada pela po­pu­lação
após as 
en­chentes que dei­xaram Porto Alegre mais de um mês ala­gada.

Que país pode existir en­quanto fron­teira e la­bo­ra­tório de prá­ticas fi­nan­ceiras e co­mer­ciais ul­tra­li­be­rais? Um país mis­ti­fi­cado, em transe re­sul­tante da úl­tima e da pró­xima guerra santa por in­ventar. Au­to­ri­zados pelo es­pí­rito de salve-se quem puder e como puder, en­tram em cena os falsos vin­ga­dores, van­glo­ri­ando-se de pi­lhar o que já foi pre­vi­a­mente es­tig­ma­ti­zado e vul­ne­ra­bi­li­zado: os bi­omas, as pe­ri­fe­rias, os povos e seus ima­gi­ná­rios en­tre­la­çados.

Em um país con­ver­tido em pla­ta­forma de su­pe­ra­cu­mu­lação de ca­pi­tais er­rantes, o es­va­zi­a­mento úl­timo é o de sen­tido e o de des­tino. A or­fan­dade mul­ti­tu­di­nária re­sul­tante en­contra alívio nos braços de pas­tores, mitos, ca­pi­tães e de­le­gados, ter­cei­ri­zando sua au­toi­magem para aqueles que os retêm, se­le­ti­va­mente, em meio à dis­si­pação. É por isso que os can­di­datos a pró­ceres da ex­trema di­reita se apre­sentam como ex­ter­mi­na­dores de al­te­ri­dades, de gê­nero, raça e com­por­ta­mento, dos ban­didos, imi­grantes, co­mu­nistas e de­mais ró­tulos de­mo­ni­zá­veis.

De um lado, hordas de mer­ce­ná­rios ar­mados, ma­te­rial e di­gi­tal­mente, à dis­po­sição para manter a ex­ceção per­ma­nente, ou seja, o poder de fato. De outro, uma le­gião de par­la­men­tares e ges­tores sempre a postos para pri­va­tizar bens pú­blicos e tornar a le­gis­lação cúm­plice ou le­ni­ente com o crime fi­nan­ceiro-em­pre­sa­rial or­ga­ni­zado. Por sobre este bloco, como abó­boda, se es­praiam re­li­giões ver­ti­ca­listas e sal­va­ci­o­nistas, em con­so­nância com think thanks ne­o­con­ser­va­dores e ne­o­na­zistas, ofe­re­cendo pa­raísos de se­gu­rança e de con­sumo para os “es­co­lhidos”.

Em tempos de guerra so­cial total e as­si­mé­trica, ficam sus­pensos os li­mites pro­te­tivos do mundo do tra­balho, dos ter­ri­tó­rios e do ima­gi­nário so­cial. A li­ber­dade de ace­lerar e atro­pelar o que es­tiver na frente do ca­minho é o âmago pro­gra­má­tico deste bloco re­pre­sen­tado por tí­teres como Trump, Ma­ri­anne Le Pan, Ne­tanyahu, Milei, entre ou­tros na es­fera in­ter­na­ci­onal. No Brasil, Bol­so­naro, Tar­císio de Freitas, Marçal e con­gê­neres re­petem o mesmo lema como num jo­gral. Não ca­su­al­mente, o cres­ci­mento de li­de­ranças po­lí­ticas com esse perfil é acom­pa­nhado pelo cres­ci­mento das bolsas e mo­vi­mentos es­pe­cu­la­tivos de­ter­mi­nados: quanto maior o so­la­vanco na con­tra­tu­a­li­dade an­te­rior, mai­ores são lu­cros ex­tra­or­di­ná­rios re­a­li­zados em de­tri­mento do fu­turo de co­le­ti­vi­dades e de pa­trimô­nios co­muns.

In­ves­ti­dores es­pe­ci­a­li­zados na in­cor­po­ração de ativos es­ta­tais exigem pa­drão SA­BESP de pri­va­ti­zação, sem freios nem con­tra­par­tidas. Os su­pe­rá­vits pri­má­rios di­la­tados que a dupla Pal­loci e Mei­reles ofe­re­ciam entre 2003 e 2015, como prova de fi­de­li­dade aos mer­cados, de­pois de Temer e Bol­so­naro foram au­to­ma­ti­zados como piso re­gu­la­mentar. No no­vís­simo velho Co­mitê de Po­lí­tica Mo­ne­tária do Banco Cen­tral, a de­fi­nição dos juros passa a ser feita de forma as­su­mida para manter e am­pliar as mar­gens de ga­nhos fi­nan­ceiros com ser­viços e tí­tulos da dí­vida pú­blica. É o fim da po­lí­tica mo­ne­tária como ins­tru­mento an­ti­cí­clico, que for­neça a li­quidez ne­ces­sária para ga­rantir so­be­rania econô­mica em tempos de crise.

A po­lí­tica de juros no Brasil é mo­vida pelo medo de con­tra­riar in­te­resses par­ti­cu­la­ristas: quanto mais em­prego e renda ge­rados, mais res­tri­tiva deve ser a po­lí­tica mo­ne­tária para neu­tra­lizar even­tuais di­na­mismos que es­capem à ló­gica do ren­tismo. Cara e coroa da mesma moeda: juros pre­ven­tivos e guerras pre­ven­tivas contra as re­to­madas de ter­ri­tório e de cres­ci­mento au­tos­sus­ten­tado.

Aus­te­ri­cídio é pouco para ca­rac­te­rizar este des­co­munal butim de re­cursos pú­blicos re­par­tidos entre con­glo­me­rados fi­nan­ceiros por meio da mul­ti­pli­cação de me­ca­nismos ar­ti­fi­ciais de en­di­vi­da­mento do Es­tado e da so­ci­e­dade. En­quanto se re­fes­telam com os des­pojos dos fundos pú­blicos e dos bens am­bi­en­tais da nação, os grandes con­glo­me­rados fi­nan­ceiros e seus corvos mi­diá­ticos ar­rotam de­nún­cias de gas­tança, cor­rupção e má gestão do Es­tado. Sub­sídio é o que se con­dena nos se­tores ainda não fi­nan­cei­ri­zados com­ple­ta­mente. Para bancos e fundos de in­ves­ti­mento, há sempre al­moço (ban­quete) grátis sem que haja con­tra­par­tidas em termos de em­prego, ino­vação e qua­li­fi­cação. Não há sis­tema fi­nan­ceiro no mundo mais sub­si­diado e pro­te­gido que aquele que opera no Brasil. Um grande pa­raíso fi­nan­ceiro como este re­quer um Banco Cen­tral que seja olhos e ou­vidos dos reis-in­ves­ti­dores. É o que se quer manter com sua au­to­nomia plena, ini­ciada com Guedes e Campos Neto, e man­tida, com re­ve­rência servil, por Haddad e Ga­lí­polo.

Con­glo­me­rados de com­mo­di­ties agrí­colas e mi­ne­rais des­frutam a mesma con­dição pa­ra­di­síaca, blin­dados e pro­te­gidos de todos os lados. O ter­ri­tório na­ci­onal ad­quire a forma de uma gi­gan­tesca in­cu­ba­dora de novas plan­ta­tions e pro­vín­cias mi­ne­rá­rias. Estes em­pre­en­di­mentos estão au­to­ri­zados a pro­mover de­sas­tres em série, de­vi­da­mente pre­ci­fi­cados, para que pros­sigam ex­pan­dindo seu raio de atu­ação. Os se­tores ex­por­ta­dores, va­lendo-se do ba­ra­te­a­mento de tra­ba­lha­dores, co­mu­ni­dades e bi­omas, se tornam os “se­tores-lí­deres” do país.

O crime, em larga es­cala, contra povos, a na­tu­reza e a eco­nomia po­pular, com­pensa. E con­ti­nuará a com­pensar, a de­pender das vozes to­ni­tru­antes que fazem calar sis­temas de jus­tiça, ór­gãos de fis­ca­li­zação e con­trole. Des­pa­chantes par­la­men­tares se apressam em aprovar le­gis­la­ções an­ti­am­bi­en­tais e an­tis­so­ciais que cri­mi­na­lizam su­jeitos co­le­tivos que se co­lo­quem na con­tramão desta cor­rida de­sen­freada. Pas­sada a boiada, fecha-se a por­teira e nela se en­fi­leiram os fuzis. Nem Deus, nem pá­tria: “se­gu­rança ju­rí­dica” da pro­pri­e­dade acima de tudo.

Sem margem ou ho­ri­zonte para firmar ou re­visar acordos in­ter­clas­sistas, pactos so­ciais ad hoc que sejam, resta o es­touro do alarme e o com­por­ta­mento de ma­nada. A pauta par­ti­cular dos grandes pro­pri­e­tá­rios – a se­gu­rança do pa­trimônio – vira pauta de todos que as­piram à única con­dição con­si­de­rada digna. Me­lhoria e di­reitos não “en­gajam” mais, pri­vi­légio é o que se al­meja, ou se é VIP ou não se é nada. Mo­da­li­dades de ser­viços e de tra­ta­mento (pre­ten­sa­mente VIP) são ofe­re­cidas aos se­dentos por re­co­nhe­ci­mento e por olhares de in­veja pro­me­tidos nas te­li­nhas. Por isso a ex­trema di­reita é pop.

O culto ao Todo Po­de­roso se des­dobra no culto à con­cen­tração in­fi­nita. Fe­chados os ca­mi­nhos para um pa­drão uni­versal de tra­ta­mento ao longo dos anos 90, apesar das me­lhores in­ten­ções e cartas de di­reitos, le­gadas de dé­cadas e sé­culos an­te­ri­ores, adeuses são dados sem que se per­ceba. É “Adeus Ros­seau” e não apenas “Adeus Lênin”. Não é só o so­ci­a­lismo que fica para trás, mas também todas as pro­messas da mo­der­ni­dade e de de­mo­cracia li­beral. Os ricos e po­bres não se en­con­trarão nem se apro­xi­marão, nin­guém mais ousa vis­lum­brar o ce­nário de uma grande classe média em ex­pansão a partir da “equa­li­zação das opor­tu­ni­dades”. Morte ao meio, ao meio real e al­me­jável por todos.

Qual­quer po­lí­tica so­cial ou ins­tru­mento de re­gu­lação pú­blica para fazer pre­va­lecer in­te­resses di­fusos e in­ter­ge­ra­ci­o­nais é pi­chada ime­di­a­ta­mente como “so­ci­a­lista”. No ca­pi­ta­lismo fi­nan­cei­ri­zado não cabem mais dá­divas ao de­baixo. A dis­função, a fra­queza ou po­breza torna-se ins­tan­ta­ne­a­mente sinal de “não me­re­ci­mento”. Me­ri­to­cracia dos ven­ce­dores, eu­genia econô­mica, apo­ro­fobia, su­pre­ma­cismo, ne­nhuma clas­si­fi­cação con­segue captar a sor­didez da fór­mula.

As po­lí­ticas ul­tra­li­be­rais e as cul­turas nar­cí­sicas em cir­cu­lação im­plo­diram as pontes de li­gação e os ca­nais de in­te­ração so­cial. Se é livre a de­fesa e os­ten­tação da for­tuna, é porque a igual­dade perdeu im­por­tância como prin­cípio le­gi­ti­ma­tório. Do alto descem os si­nais de asco e re­pug­nância contra os des­car­tá­veis, aqueles que não de­ve­riam existir. Prag­ma­ti­ca­mente, os que podem se salvar mandam para o in­ferno os que não podem.

No ima­gi­nário ge­ne­ra­li­zado, fa­bri­cado com terror, se­questro e bombas, o ini­migo é aquele que in­ter­rompe ou ameaça in­ter­romper sua as­censão. São ta­xados de cor­ruptos, di­ta­dores e ban­didos todos que plei­teiem ou jus­ti­fi­quem a adoção de me­ca­nismos re­dis­tri­bu­tivos da renda. As ban­deiras de Is­rael nas ma­ni­fes­ta­ções bol­so­na­ristas são di­dá­ticas, ex­pondo os cru­za­mentos de es­tra­té­gias fun­da­men­ta­listas. Ini­migo no vórtex, todas as armas e mé­todos são aben­ço­ados. Grande Is­rael, senha da gran­deza de todas as or­dens, para os “es­co­lhidos”. Todo poder e toda a glória para os “fi­lhos di­letos”.

No caso bra­si­leiro, o que une todas as di­reitas é a de­mo­ni­zação das prá­ticas po­lí­ticas de­di­cadas a des­con­cen­trar saber, poder e renda. O PT, a es­querda e a ban­deira ver­melha, são alvos mais ma­ne­já­veis, mas é a luta so­cial e o con­junto de me­mó­rias de re­sis­tência da classe tra­ba­lha­dora e das co­mu­ni­dades o que se quer er­ra­dicar.

No andar de cima, no campo da re­gu­lação das fi­nanças, do agro­ne­gócio e da in­dús­tria ex­tra­tiva, há cada vez mais au­tor­re­gu­lação inter-mo­no­po­lís­tica. E o que sobra no andar de baixo? Fi­camos com a dis­puta pela in­ter­me­di­ação do que sobra da dí­vida, do que sobra de poder re­gu­la­tório? A dis­puta pos­sível não es­taria em es­paços de poder oclusos e pa­ra­lelos, cons­truídos por dé­cadas de mo­bi­li­zação so­cial?

En­fren­tamos nas úl­timas dé­cadas uma sequência de con­trar­re­formas que tratou de res­taurar e de­pois ex­po­nen­ciar graus e ritmos de acu­mu­lação de ca­pital. Seu iti­ne­rário é a des­truição dos re­fe­ren­ciais co­le­tivos de or­ga­ni­zação e das ga­ran­tias ob­je­tivas e sub­je­tivas dos di­reitos so­ciais e po­lí­ticos da classe tra­ba­lha­dora. Cortes pro­fundos na carne com a im­po­sição de blo­queios po­lí­ticos e ins­ti­tu­ci­o­nais de tudo o que possa ser de­mo­cra­ti­zado e so­ci­a­li­zado no país.

Nesse ce­nário, é in­dis­pen­sável res­gatar a me­mória das lutas, me­mória do pro­cesso, não apenas do re­sul­tado. Não cabe qual­quer sau­do­sismo acerca das chances e es­paços an­te­ri­or­mente al­can­çados. A visão es­tá­tica e le­ga­lista dos di­reitos, tí­pica da fi­lo­sofia po­lí­tica li­beral, se podia fazer algum sen­tido em pe­ríodos de re­la­tiva es­ta­bi­li­dade econô­mico-po­lí­tica, não tem mais lugar no bojo das con­vul­sões es­tru­tu­rais do ca­pi­ta­lismo e de avanço sub­se­quente de formas po­lí­ticas au­to­ri­tá­rias e ne­o­fas­cistas.

O la­mento da perda deve ser pas­sagem para a evo­cação. Para en­con­trar ata­lhos e saídas, será pre­ciso criar as con­di­ções ob­je­tivas e sub­je­tivas para que os do­mi­nantes temam no­va­mente os do­mi­nados e ad­mitam a de­fi­nição de li­mites e freios à sua sanha ex­pan­si­o­nista. É pre­ciso di­men­si­onar o ta­manho dos es­tragos e a pro­fun­di­dade das ofen­sivas pro­mo­vidas nestes anos. Ao mesmo tempo, é pre­ciso medir o poder so­cial que ainda de­temos e res­guar­damos e a partir daí con­jec­turar como vi­a­bi­lizar as con­tra­o­fen­sivas ne­ces­sá­rias.

Luis Fer­nando Novoa Garzon é so­ció­logo e pro­fessor da Uni­ver­si­dade Fe­deral de Rondônia.

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