Correio da Cidadania

Contra o fechamento da Vila Itororó

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Nós, da Clí­nica Pú­blica de Psi­ca­ná­lise, sou­bemos há al­guns dias da no­tícia de en­cer­ra­mento do pro­jeto Vila Ito­roró Can­teiro Aberto tal como acon­tece hoje, com pos­sível fe­cha­mento do galpão para ati­vi­dades cul­tu­rais. Somos par­ceiros do pro­jeto e por isso nos pre­o­cu­pamos com o an­da­mento do nosso tra­balho.
Somos um grupo for­mado por psi­ca­na­listas e ar­tistas que acre­ditam na im­por­tância de com­par­ti­lhar a psi­ca­ná­lise como saber e de pro­por­ci­onar este tipo de tra­ta­mento para po­pu­la­ções que, de outra forma, te­riam muita di­fi­cul­dade em acessá-lo.

São muitas as ra­zões que di­fi­cultam o acesso à psi­ca­ná­lise: o valor re­gu­lar­mente co­brado pelos aten­di­mentos; a pouca pre­sença da psi­ca­ná­lise na rede pú­blica de saúde e nos con­vê­nios par­ti­cu­lares; e, tão im­por­tante quanto as ra­zões an­te­ri­ores, o des­co­nhe­ci­mento mesmo sobre a es­pe­ci­fi­ci­dade da psi­ca­ná­lise nas ca­madas so­ciais mais em­po­bre­cidas, ou me­lhor, a la­cuna da noção de psi­ca­ná­lise na cul­tura am­pliada. Acre­di­tamos, por­tanto, ser um tra­balho im­por­tante in­serir a psi­ca­ná­lise na cul­tura.

Este en­ten­di­mento não é ori­ginal. Desde o final da dé­cada de 1910 e co­meço da dé­cada de 1920, Freud es­creveu sobre a im­por­tância de, no fu­turo, a psi­ca­ná­lise ser in­cluída entre as de­mais formas de tra­ta­mento para ado­e­ci­mentos da alma e do corpo sob res­pon­sa­bi­li­dade do poder pú­blico e ofer­tadas às ca­madas so­ciais mais po­bres, in­cluindo aí a classe média.

A partir dessa noção foi criada a Po­li­clí­nica de Berlim, ex­pe­ri­ência res­pon­sável não apenas pelo tra­ta­mento das pes­soas que a pro­cu­raram, mas também pelo de­sen­vol­vi­mento ori­ginal de uma for­mação dos psi­ca­na­listas e da trans­missão de seu co­nhe­ci­mento. Numa prá­tica in­se­rida na cul­tura, en­ri­que­cida pela ampla va­ri­e­dade so­cial de pa­ci­entes, a psi­ca­ná­lise deu grandes saltos, ins­ti­tu­ci­o­nais e ci­en­tí­ficos. De lá surgiu, por exemplo, a prá­tica que cha­mamos de su­per­visão, na qual ana­listas mais ex­pe­ri­entes ajudam ou­tros a pensar os casos que estão aten­dendo, no lugar e nas cir­cuns­tân­cias em que estão aten­dendo.

A Clí­nica Pú­blica de Psi­ca­ná­lise opera no galpão da Vila Ito­roró Can­teiro Aberto desde junho de 2016. Tra­ba­lhamos com al­guns for­matos de aten­di­mento, in­di­vi­duais e de grupo, em dias de se­mana e aos sá­bados, neste úl­timo no for­mato de um plantão aberto. Todos os aten­di­mentos são gra­tuitos. Somos hoje 9 psi­ca­na­listas, 3 su­per­vi­sores e uma ar­tista. Fa­zemos em média 430 aten­di­mentos por mês, sendo apro­xi­ma­da­mente 50 pa­ci­entes re­gu­lares, com con­ti­nui­dade no aten­di­mento.

Entre os pa­ci­entes estão pes­soas do bairro, de re­giões afas­tadas da ci­dade e ex-mo­ra­dores da Vila, para quem a Clí­nica foi ini­ci­al­mente ima­gi­nada. Além dos plan­tões, aos quais a po­pu­lação tem acesso pela co­mu­ni­cação da Vila Ito­roró Can­teiro Aberto, também re­ce­bemos en­ca­mi­nha­mentos de equi­pa­mentos pú­blicos da rede de saúde e de ins­ti­tui­ções so­ciais que atuam no ter­ri­tório (como o SASF Bela Vista, o CCA do Carmo e o Ci­sarte). Através da Clí­nica já foram or­ga­ni­zados cursos de for­mação, grupos de es­tudo e es­tamos ini­ci­ando uma bi­bli­o­teca pú­blica que, além de li­vros de psi­ca­ná­lise, con­templa es­tudos pós-co­lo­niais, de raça e gê­nero e textos sobre ex­pe­ri­ên­cias de ar­tistas como Lygia Clark no campo am­pliado da cul­tura.

Nosso tra­balho não acon­tece dentro do galpão por acaso. Apos­tamos con­cei­tu­al­mente em um tra­balho te­ra­pêu­tico fora de am­bi­entes hos­pi­ta­lares, ao lado de ou­tros grupos que re­a­lizam suas prá­ticas cul­tu­rais, como o circo, a co­zinha, a dança e ou­tros di­versos usos es­pon­tâ­neos, que se tor­naram a marca do es­paço. Acre­di­tamos no po­ten­cial re­vi­ta­li­zante de um es­paço em que o ado­e­ci­mento não é uma marca. Pelo con­trário, além do tra­balho ana­lí­tico, as pes­soas que fre­quentam a Clí­nica tomam con­tato com uma ci­dade viva.

A noção de usos es­pon­tâ­neos e o con­vite para que a pró­pria po­pu­lação pro­duza, em pro­cesso, o Centro Cul­tural, é for­te­mente sin­to­ni­zada com o tra­balho ana­lí­tico, em que é atri­buído ao pró­prio pa­ci­ente a res­pon­sa­bi­li­dade de falar, en­con­trar res­postas e dar formas e ex­pres­sões ao seu de­sejo. A pró­pria forma do es­paço con­tribui enor­me­mente para o tra­balho de aná­lise.

Um lugar aberto, co­lo­rido, vivo, como uma praça, re­or­ga­niza por si só a di­mensão do so­fri­mento, do iso­la­mento, da so­lidão. Não é um lugar onde as pes­soas são do­entes, como pa­ra­do­xal­mente pode ser uma clí­nica re­gular, ou mesmo um hos­pital. Ao con­viver com ou­tros grupos cri­a­tivos que usam o galpão, os nossos pa­ci­entes criam laços, re­la­ções. Em tempos de crise, este pro­jeto tem se mos­trado vital para re­cu­pe­rarmos uma di­mensão de es­paço pú­blico.

Esse tra­balho nos pos­si­bi­lita en­tender e in­tervir te­ra­peu­ti­ca­mente nos mo­vi­mentos psí­quicos do nosso tempo – o que não con­se­gui­ríamos atu­ando apenas em con­sul­tó­rios par­ti­cu­lares. O co­ti­diano do pro­jeto, sempre tão vivo, con­tribui para um alar­ga­mento da pró­pria psi­ca­ná­lise, en­ten­dida e pra­ti­cada de forma aberta.

Por isso tor­namos pú­blico o nosso de­sejo de per­ma­necer tra­ba­lhando no galpão ati­vado cul­tu­ral­mente e de, num fu­turo pró­ximo, mi­grar para uma das casas res­tau­radas. A efi­cácia e mon­tagem do nosso tra­balho está vin­cu­lada com a his­tória da Vila Ito­roró, do bairro e do Can­teiro Aberto. O fe­cha­mento desse galpão, mesmo que tem­po­rário, seria uma enorme perda para nós e para os pa­ci­entes, que já nos per­guntam, pre­o­cu­pados, sobre a con­ti­nu­ação do nosso tra­balho e de seus acom­pa­nha­mentos te­ra­pêu­ticos. Vi­vemos em uma ci­dade que con­centra os mai­ores nú­meros de ado­e­ci­mento psí­quico do mundo, e os tra­ta­mentos psi­co­te­ra­pêu­ticos são pra­ti­ca­mente ina­ces­sí­veis para a ampla mai­oria da po­pu­lação.

Re­for­çamos, por­tanto, nesta co­mu­ni­cação en­de­re­çada para a se­cre­taria de Cul­tura, e também para o pú­blico em geral, o pe­dido de que o galpão (can­teiro) per­ma­neça aberto, com toda a vida cul­tural que tem hoje, a favor da saúde psí­quica da po­pu­lação.

Clí­nica Pú­blica de Psi­ca­ná­lise.

Leia série de textos pu­bli­cada no Cor­reio sobre a Clí­nica Pú­blica de Psi­ca­ná­lise

Partes 1, 2, 3 e 4

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