Correio da Cidadania

Equador repete dinâmica em que esquerda fala de passado e direita aponta ao futuro

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Foto: AP

País que se­diou um dos mais ino­va­dores pro­cessos po­lí­ticos dos anos 2000, o Equador afunda na ins­ta­bi­li­dade, in­clu­sive com ní­veis iné­ditos de vi­o­lência, após a re­to­mada dos go­vernos ne­o­li­be­rais. A fa­lência do go­verno de Guil­lermo Lasso, que dis­solveu o con­gresso, forçou elei­ções nas quais o em­pre­sário Da­niel Noboa der­rotou a ad­vo­gada Luísa Gon­zalez para um curto man­dato de 18 meses. De toda forma, o país re­pro­duziu um ro­teiro cada vez mais fre­quente nas de­mo­cra­cias li­be­rais, onde se­tores re­a­ci­o­ná­rios e con­ser­va­dores con­se­guem captar a in­sa­tis­fação so­cial, in­clu­sive das classes su­bal­ternas. Na en­tre­vista ao Cor­reio, o ci­en­tista po­lí­tico equa­to­riano Decio Ma­chado, ofe­rece sua ex­pli­cação para o con­texto deste país.

Na en­tre­vista, Decio des­creve as ra­zões que le­varam o go­verno do ban­queiro Guil­lermo Lasso à ban­car­rota, pro­cesso que en­volve um es­gar­ça­mento do te­cido so­cial cau­sado por uma re­cente adesão à agenda norte-ame­ri­cana de guerra às drogas. Ainda assim, dada a me­di­o­cri­dade dos ul­timos man­da­tá­rios, Noboa tem con­di­ções de se for­ta­lecer para as elei­ções de 2025.

“Os dois úl­timos go­vernos, li­de­rados por Lenín Mo­reno e Guil­lermo Lasso, foram tão de­sas­trosos que a Da­niel Noboa bas­taria re­duzir os ín­dices de vi­o­lência e in­se­gu­rança in­terna, e al­cançar certo di­na­mismo econô­mico com algum in­ves­ti­mento es­tran­geiro e ge­ração de em­pregos dignos para poder as­pirar à re­e­leição em 2025”, re­sumiu.

Sobre a en­trada do nar­co­trá­fico no país, com forte in­ci­dência nas elei­ções, trata-se de uma his­tória cujo fra­casso o Brasil co­nhece bem. “A vi­o­lência co­meça a au­mentar quando a ad­mi­nis­tração Mo­reno im­porta a guerra dos Es­tados Unidos contra as drogas. Até então, a droga pas­sava pelo ter­ri­tório equa­to­riano, dei­xava uma pe­quena parte para o mi­cro­trá­fico in­terno e saía por portos e ae­ro­portos com des­tino aos Es­tados Unidos e Eu­ropa, que são os mer­cados onde essas redes cri­mi­nosas geram grandes lu­cros. Esse erro tá­tico, de­vido à sub­ser­vi­ência dos go­vernos de Mo­reno e Lasso à po­lí­tica an­ti­drogas da Casa Branca, é a origem da si­tu­ação que o país en­frenta hoje, agra­vada quando os car­téis me­xi­canos co­meçam a pagar com mer­ca­do­rias a seus par­ceiros lo­cais, de­sen­ca­de­ando uma guerra in­terna entre gan­gues pelos mer­cados e pontos de venda in­ternos”, ex­plicou.

Quanto à es­querda he­gemô­nica do país, cabe en­tender por quê nao con­se­guiu vencer as elei­ções após pro­ta­go­nizar a cha­mada Re­vo­lução Ci­dadã, que ins­ti­tuiu uma nova cons­ti­tuição, com re­co­nhe­ci­mento da di­ver­si­dade de povos e res­peito aos di­reitos da na­tu­reza, além de ter pro­du­zido avanços so­ci­o­e­conô­micos. Mais uma vez, mo­vi­mentos so­ciais com forte sub­je­ti­vi­dade an­tis­sis­tê­mica não abra­çaram a can­di­data apoiada pelo ex-pre­si­dente Ra­fael Correa.

“Ra­fael Correa cri­ticou seu can­di­dato pre­si­den­cial nas elei­ções de 2021, An­drés Arauz (can­di­dato a vice nesta eleição), quando este tentou se apro­ximar do mo­vi­mento in­dí­gena. Neste pro­cesso elei­toral de 2023, foi o líder da Con­fe­de­ração Na­ci­onal In­dí­gena do Equador (CO­NAIE) quem propôs apoiar o cor­reísmo, desde que este se com­pro­me­tesse a atender às de­mandas po­lí­ticas do povo in­dí­gena, mas na prá­tica tudo ficou em nada”.

Ma­chado com­ple­menta com uma aná­lise cada vez mais fre­quente do atual mo­mento das lutas po­lí­ticas e mesmo de classes que marcam os pro­cessos po­lí­ticos. En­quanto a es­querda de­fende um pas­sado que já não pode voltar, a di­reita se apre­senta como “dis­rup­tiva”. A des­peito das ilu­sões ins­ti­tu­ci­o­nais, a au­sência de crí­tica ao ca­pi­ta­lismo e suas ló­gicas de re­pro­dução pa­rece fatal. “Em úl­tima aná­lise, es­tamos tes­te­mu­nhando um fenô­meno de pro­le­ta­ri­zação do voto para a ul­tra­di­reita, re­la­ci­o­nado ao fato de que o pro­gres­sismo re­nun­ciou a uma ob­vi­e­dade fun­da­mental: os pro­blemas que nossas so­ci­e­dades en­frentam de­rivam da es­tru­tura do sis­tema po­lí­tico-econô­mico ao qual estão sub­me­tidas. Assim, a es­querda vai fi­cando res­trita à de­fesa de­ses­pe­rada de di­reitos cada vez mais di­mi­nuídos a cada novo ciclo econô­mico, aco­mo­dando-se ide­o­lo­gi­ca­mente aos termos po­lí­ticos que o ca­pital e o mer­cado vão gra­du­al­mente im­pondo”.

Leia a se­guir a en­tre­vista com­pleta com Décio Ma­chado.

Cor­reio da Ci­da­dania: Como ob­servou a dis­puta pelo se­gundo turno das elei­ções do Equador entre Da­niel Noboa, re­pre­sen­tante con­ser­vador, e Luisa Gon­zales, do mo­vi­mento Re­vo­lução Ci­dadã, até hoje atre­lado a Ra­fael Correa e os go­vernos que fi­zeram parte da onda pro­gres­sista da Amé­rica La­tina? O que a vi­tória de Noboa sig­ni­fica?

Decio Ma­chado: Es­tamos na fase de for­mação do novo go­verno, que as­su­mirá as fun­ções no final deste mês de no­vembro, o que per­mite ana­lisar o pro­cesso elei­toral com certa ob­je­ti­vi­dade e uma visão re­tros­pec­tiva.

Após ana­lisar os re­la­tó­rios de di­fe­rentes em­presas de pes­quisa sobre a evo­lução da in­tenção de voto du­rante a cam­panha elei­toral, tudo in­dica que a dis­puta pre­si­den­cial foi de­ci­dida no pri­meiro turno.

Apesar de a fa­mília Noboa fazer parte das elites econô­micas mais pri­vi­le­gi­adas do país e de o pai, Ál­varo Noboa, ter sido can­di­dato pre­si­den­cial cinco vezes com pouco su­cesso, no início deste pro­cesso elei­toral Da­niel Noboa era pra­ti­ca­mente des­co­nhe­cido pela so­ci­e­dade equa­to­riana. Na ver­dade, du­rante todo o pri­meiro turno, sua es­tra­tégia de cam­panha tinha os traços clás­sicos de uma cam­panha de po­si­ci­o­na­mento de imagem com foco nas pró­ximas elei­ções, de 2025.

No en­tanto, em um pro­cesso elei­toral de­ses­ta­bi­li­zado pelo im­pacto da vi­o­lência que re­sultou nos as­sas­si­natos de vá­rias au­to­ri­dades lo­cais, can­di­datos ao par­la­mento e um dos can­di­datos pre­si­den­ciais, Da­niel Noboa con­se­guiu obter 2,31 mi­lhões de votos (23,47% dos votos vá­lidos emi­tidos) e sur­pre­en­den­te­mente avançou para dis­putar o se­gundo turno contra ou­tros ri­vais de di­reita que, a prin­cípio, pa­re­ciam mais fa­vo­ritos.

Em um Equador imerso em uma crise de re­pre­sen­tação e di­ante do can­saço ge­ne­ra­li­zado que a so­ci­e­dade equa­to­riana sente em re­lação ao seu es­ta­be­le­ci­mento po­lí­tico, Noboa con­se­guiu re­pre­sentar o novo em opo­sição ao an­tigo, com slo­gans como "Por um novo Equador" ou "Somos uma nova ge­ração".

Assim, en­quanto o dis­curso da can­di­data cor­reísta Luisa Gon­zález rei­vin­di­cava um pas­sado "ro­man­ti­zado", fa­zendo re­fe­rência à dé­cada de go­verno de Ra­fael Correa, o dis­curso de Da­niel Noboa, com 35 anos, fa­lava aos jo­vens e se con­cen­trava no fu­turo.

Che­gando ao se­gundo turno, bastou o ali­nha­mento do va­riado es­pectro po­lí­tico e so­cial an­ti­cor­reísta para que Da­niel Noboa ven­cesse sua opo­nente por uma margem es­treita de votos.

Em re­sumo, di­ante do en­ve­lhe­ci­mento pre­ma­turo da po­lí­tica pro­gres­sista equa­to­riana, a vi­tória de Da­niel Noboa de­monstra a ca­pa­ci­dade de re­no­vação po­lí­tica e li­de­rança na con­ser­va­dora di­reita equa­to­riana.

Cor­reio da Ci­da­dania: Como ava­liar a pre­si­dência de Guil­lermo Lasso? Que fa­tores le­varam à der­ro­cada de seu go­verno a ponto de de­cretar o fe­cha­mento deste con­gresso e forçar novas elei­ções?

Decio Ma­chado: O go­verno de Guil­lermo Lasso é pos­si­vel­mente o pior go­verno que o Equador teve ao longo de sua his­tória re­pu­bli­cana. É um go­verno com­posto apenas por elites brancas, onde as mu­lheres ocupam cargos mi­nis­te­riais se­cun­dá­rios e no qual todos os seus mem­bros estão vin­cu­lados ao mundo cor­po­ra­tivo. Eles nunca en­ten­deram a po­lí­tica, nunca se im­por­taram com o país e me­nos­pre­zaram o papel do Es­tado. Um go­verno onde os ní­veis de ine­fi­ci­ência e cor­rupção são es­can­da­losos.

Mas mais grave do que tudo isso é que o go­verno de Guil­lermo Lasso tem sé­rios in­dí­cios de vín­culos com o nar­co­trá­fico, algo que não é tão sur­pre­en­dente, con­si­de­rando que o pre­si­dente é pro­pri­e­tário do se­gundo banco mais im­por­tante do país, e é nas ins­ti­tui­ções fi­nan­ceiras que as redes cri­mi­nosas lavam seus ativos.

A partir disso, uma série de ações in­ves­ti­ga­tivas foram ini­ci­adas no Le­gis­la­tivo equa­to­riano, que re­sul­ta­riam em um jul­ga­mento po­lí­tico que de­veria levar à des­ti­tuição do atual pre­si­dente do Equador. Dois dias antes desse jul­ga­mento po­lí­tico, Lasso dis­solveu a Câ­mara de Re­pre­sen­tantes e con­vocou essas elei­ções an­te­ci­padas.

Po­demos de­finir o go­verno de Guil­lermo Lasso como um go­verno fra­cas­sado e des­co­nec­tado da re­a­li­dade do país, sem pro­posta econô­mica ex­ceto o be­ne­fício das elites em­pre­sa­riais mais pró­ximas ao go­verno, e du­rante o qual o país se tornou um dos prin­ci­pais cen­tros de drogas na Amé­rica La­tina e elevou seus in­di­ca­dores de vi­o­lência a ní­veis nunca antes vistos no Equador.

Cor­reio da Ci­da­dania: Para o pú­blico bra­si­leiro, o que de­creto de morte cru­zada sig­ni­fica exa­ta­mente? O que você pensa deste dis­po­si­tivo?

Decio Ma­chado: A "mu­erte cru­zada" é o termo usado para se re­ferir ao me­ca­nismo de des­ti­tuição do pre­si­dente do Equador e à dis­so­lução da As­sem­bleia Na­ci­onal (o con­gresso equa­to­riano), con­forme pre­visto nos ar­tigos 130 e 148 da Cons­ti­tuição vi­gente.

Sob causas, formas e prazos es­ta­be­le­cidos, o ar­tigo 130 per­mite que o Le­gis­la­tivo des­titua o pre­si­dente da Re­pú­blica com uma mai­oria qua­li­fi­cada de dois terços dos par­la­men­tares, en­quanto o ar­tigo 148 con­fere ao pre­si­dente o poder de dis­solver o poder le­gis­la­tivo, como ocorreu em maio deste ano no Equador. Isso per­mite que ele go­verne por de­creto du­rante seis meses até o es­ta­be­le­ci­mento de um novo go­verno eleito nas urnas.

Do meu ponto de vista, é um grave erro dos cons­ti­tuintes equa­to­ri­anos per­mitir que o pre­si­dente da Re­pú­blica possa dis­solver o poder le­gis­la­tivo. A so­lução para uma crise de­mo­crá­tica passa por mais de­mo­cracia e não por menos. Per­mitir que um go­verno em crise go­verne por de­creto em um país que o ques­tiona res­ponde a ló­gicas au­to­ri­tá­rias e não aos pro­cessos cons­ti­tuintes pós-ne­o­li­be­rais, como era o caso da Cons­ti­tuição de 2008 no Equador.

Cor­reio da Ci­da­dania: Quais pers­pec­tivas se abrem para o curto man­dato de Noboa? Há chances de es­ta­bi­li­zação do país?

Decio Ma­chado: O go­verno en­trante ad­mi­nis­trará o país por apenas 18 meses, sendo um go­verno tran­si­tório até um novo pro­cesso elei­toral que ocor­rerá no pri­meiro tri­mestre de 2025, com uma nova posse pre­vista para o final de maio desse ano.

O pre­si­dente Noboa as­su­mirá as ré­deas de um país imerso em uma grave e mul­ti­fa­ce­tada crise: de se­gu­rança, com o Equador atu­al­mente re­gis­trando uma taxa de mais de 40 ho­mi­cí­dios para cada 100.000 ha­bi­tantes; de re­pre­sen­tação po­lí­tica, onde a le­gi­ti­mi­dade da classe po­lí­tica e das ins­ti­tui­ções pú­blicas está di­mi­nuindo cada vez mais em uma so­ci­e­dade que já não acre­dita em nada nem em nin­guém; e econô­mica, que re­sulta na se­mi­es­tag­nação desde 2015, após o fim do "boom das com­mo­di­ties". O Equador é o único país da re­gião que ainda não re­cu­perou os in­di­ca­dores ma­cro­e­conô­micos an­te­ri­ores à pan­demia de 2020. Não houve uma ver­da­deira re­cu­pe­ração econô­mica, como su­gere a fa­lácia dis­cur­siva do go­verno; o que o país ex­pe­ri­mentou foi apenas um "efeito re­bote" após a pa­ra­lisia econô­mica cau­sada pelo co­ro­na­vírus.

Os dois úl­timos go­vernos, li­de­rados por Lenín Mo­reno e Guil­lermo Lasso, foram tão de­sas­trosos que a Da­niel Noboa bas­taria re­duzir os ín­dices de vi­o­lência e in­se­gu­rança in­terna, e al­cançar certo di­na­mismo econô­mico com algum in­ves­ti­mento es­tran­geiro e ge­ração de em­pregos dignos para poder as­pirar à re­e­leição em 2025.

Apesar de Mo­reno e Lasso terem dei­xado o pa­tamar muito baixo, Noboa não terá fa­ci­li­dades. Ele conta apenas com 14 ca­deiras em um par­la­mento de 137 le­gis­la­dores, onde a ban­cada cor­reísta é a prin­cipal opo­sição. O fato de o país estar imerso no­va­mente em um pro­cesso pré-elei­toral em poucos meses não aju­dará na ge­ração de con­sensos.

Cor­reio da Ci­da­dania: Como ob­serva a en­trada em cena do nar­co­trá­fico num país visto in­ter­na­ci­o­nal­mente como mais imune a esta in­fluência? Há pre­paro su­fi­ci­ente do Es­tado na­ci­onal em lidar com este po­de­roso ator trans­na­ci­onal?

Decio Ma­chado: O Equador tem es­tado his­to­ri­ca­mente sob pressão do nar­co­trá­fico desde a dé­cada de 1990. Sua po­sição ge­o­grá­fica, si­tuada entre a Colômbia e o Peru, o tornou um país de trân­sito. Pos­te­ri­or­mente, após o pro­cesso de do­la­ri­zação em ja­neiro de 2000, também se tornou um mer­cado para a la­vagem de di­nheiro. No en­tanto, nos anos se­guintes, isso não im­plicou em um au­mento sig­ni­fi­ca­tivo do crime dentro de suas fron­teiras.

A vi­o­lência co­meça a au­mentar quando a ad­mi­nis­tração Mo­reno im­porta a guerra dos Es­tados Unidos contra as drogas. Até então, a droga pas­sava pelo ter­ri­tório equa­to­riano, dei­xava uma pe­quena parte para o mi­cro­trá­fico in­terno e saía por portos e ae­ro­portos com des­tino aos Es­tados Unidos e Eu­ropa, que são os mer­cados onde essas redes cri­mi­nosas geram grandes lu­cros.

Esse erro tá­tico, de­vido à sub­ser­vi­ência dos go­vernos de Mo­reno e Lasso à po­lí­tica an­ti­drogas da Casa Branca, é a origem da si­tu­ação que o país en­frenta hoje, agra­vada quando os car­téis me­xi­canos co­meçam a pagar com mer­ca­do­rias a seus par­ceiros lo­cais, de­sen­ca­de­ando uma guerra in­terna entre gan­gues pelos mer­cados e pontos de venda in­ternos.

Quando Con­do­lezza Rice, du­rante a ad­mi­nis­tração Bush, re­de­finiu o con­ceito de "Es­tado fa­lido" - termo sur­gido nos anos 1990 após o co­lapso da União So­vié­tica - ela fa­lava de um Es­tado onde redes cri­mi­nosas ha­viam pe­ne­trado seu sis­tema po­lí­tico, seu sis­tema ju­di­cial e seu sis­tema de se­gu­rança... Bem, no Equador, o nar­co­trá­fico fi­nancia cam­pa­nhas elei­to­rais e pe­netra o Es­tado em seus múl­ti­plos ní­veis, com­prando e chan­ta­ge­ando juízes, e evi­den­te­mente tem in­fluência sobre de­ter­mi­nados co­man­dantes e mem­bros da Po­lícia Na­ci­onal e das Forças Ar­madas.

Cor­reio da Ci­da­dania: Al­guns ana­listas dizem que no­va­mente o mo­vi­mento Re­vo­lução Ci­dadã não ob­teve o ne­ces­sário apoio dos grupos in­dí­genas or­ga­ni­zados no país, num con­texto onde se votou em ple­bis­cito a proi­bição de ex­plo­ração de pe­tróleo em área amazô­nica, no cha­mado Parque Ya­suni. Como ob­serva essas di­fe­renças entre um grupo po­lí­tico tido como pro­gres­sista e mo­vi­mentos que têm uma visão mais ra­dical de pre­ser­vação da na­tu­reza e a pró­pria de­fesa de outro modo de vida?

Decio Ma­chado: Uno dos ele­mentos ca­rac­te­rís­ticos da dé­cada de gestão de Ra­fael Correa no Equador de 2007 a 2017 foi sua pro­ble­má­tica re­lação com os mo­vi­mentos so­ciais, não apenas com o mo­vi­mento in­dí­gena, mas também com o mo­vi­mento de mu­lheres e o am­bi­en­ta­lismo. A falta de re­flexão crí­tica por parte do cor­reísmo faz com que essas fe­ridas ainda não te­nham ci­ca­tri­zado.

Ra­fael Correa cri­ticou seu can­di­dato pre­si­den­cial nas elei­ções de 2021, An­drés Arauz, quando este tentou se apro­ximar do mo­vi­mento in­dí­gena. Neste pro­cesso elei­toral de 2023, foi o líder da Con­fe­de­ração Na­ci­onal In­dí­gena do Equador (CO­NAIE) quem propôs apoiar o cor­reísmo, desde que este se com­pro­me­tesse a atender às de­mandas po­lí­ticas do povo in­dí­gena, mas na prá­tica tudo ficou em nada.

Para os se­tores so­ciais, apoiar um par­tido po­lí­tico im­plica, além da von­tade, acordos con­cretos. Vimos isso na Colômbia com Gus­tavo Petro e o Pacto His­tó­rico. Sem acordos de go­verno e até mesmo nomes em de­ter­mi­nadas áreas de gestão, qual­quer po­si­ci­o­na­mento pú­blico a favor da Re­vo­lu­ción Ciu­da­dana por parte dos mo­vi­mentos so­ciais seria apenas sub­missão.

En­quanto a Re­vo­lu­ción Ciu­da­dana e seu líder his­tó­rico não en­ten­derem isso, con­ti­nu­arão dis­pu­tando os pro­cessos elei­to­rais sem o apoio da rede so­cial or­ga­ni­zada no Equador. E, os fatos con­firmam, so­zi­nhos não avançam.

Cor­reio da Ci­da­dania: Como ob­serva a cha­mada onda pro­gres­sista la­tino-ame­ri­cana, ini­ciada em 1998 com a eleição de Chávez na Ve­ne­zuela e go­vernos de perfil es­quer­dista em pra­ti­ca­mente todos os países sul-ame­ri­canos na pri­meira dé­cada dos anos 2000? Como avalia o atual es­tágio dos grupos po­lí­ticos que pro­ta­go­ni­zaram esta onda, após crises es­tru­tu­rais em todos os países, re­tornos de go­vernos de di­reita, al­guns deles até de perfil ne­o­fas­cista e, apesar de tudo, novas vi­tó­rias elei­to­rais deste campo?

Decio Ma­chado: Na minha ati­vi­dade como con­sultor po­lí­tico, tive a opor­tu­ni­dade de as­ses­sorar di­versas or­ga­ni­za­ções po­lí­ticas e go­vernos as­so­ci­ados ao pro­gres­sismo na Amé­rica La­tina, o que me per­mite dis­tin­guir dois mo­mentos.

No pri­meiro mo­mento, si­tuado na pri­meira dé­cada e meia do pre­sente sé­culo, apesar das di­fe­renças entre eles, o pro­gres­sismo com­par­ti­lhava pelo menos quatro ca­rac­te­rís­ticas: o for­ta­le­ci­mento/re­po­si­ci­o­na­mento dos Es­tados após o pe­ríodo ne­o­li­beral; a im­ple­men­tação de po­lí­ticas so­ciais com­pen­sa­tó­rias como eixo das novas go­ver­na­bi­li­dades; o mo­delo ex­tra­ti­vista de pro­dução e ex­por­tação de com­mo­di­ties como base da eco­nomia; e a re­a­li­zação de grandes obras de in­fra­es­tru­tura.

Hoje, após o breve pe­ríodo de res­tau­ração po­lí­tica con­ser­va­dora, a re­a­li­dade da­quele pri­meiro pe­ríodo é muito mais tênue. Es­tamos fa­lando de go­vernos muito mais con­ser­va­dores, mais do­mes­ti­cados e com menos pre­tensão de re­formar o sis­tema do que os do pas­sado. Para citar apenas al­guns casos na re­gião, temos Lula aliado a Alckmin no Brasil, Lucho Arce con­fron­tado com Evo Mo­rales na Bo­lívia, a de­riva ar­gen­tina que fez o can­di­dato do pe­ro­nismo pro­gres­sista ser Sergio Massa. Enfim, in­de­pen­den­te­mente das ava­li­a­ções, es­tamos di­ante de outra re­a­li­dade cuja ca­pa­ci­dade de en­can­ta­mento para os cada vez mais am­plos se­tores in­sa­tis­feitos com a rel­polík é muito li­mi­tada.

Aqueles que ocupam hoje o es­paço da al­ter­na­tiva na po­lí­tica são ou­tros, são as ten­dên­cias fi­lo­fas­cistas em cres­ci­mento ao longo e largo do con­ti­nente. Em úl­tima aná­lise, es­tamos tes­te­mu­nhando um fenô­meno de pro­le­ta­ri­zação do voto para a ul­tra­di­reita, re­la­ci­o­nado ao fato de que o pro­gres­sismo re­nun­ciou a uma ob­vi­e­dade axi­o­má­tica fun­da­mental: os pro­blemas que nossas so­ci­e­dades en­frentam de­rivam da es­tru­tura do sis­tema po­lí­tico-econô­mico ao qual estão sub­me­tidas. Assim, a es­querda vai fi­cando res­trita à de­fesa de­ses­pe­rada de di­reitos cada vez mais di­mi­nuídos a cada novo ciclo econô­mico, aco­mo­dando-se ide­o­lo­gi­ca­mente aos termos po­lí­ticos que o ca­pital e o mer­cado vão gra­du­al­mente im­pondo.

Ga­briel Brito é jor­na­lista, re­pórter do site Outra Saúde e editor do Cor­reio da Ci­da­dania.

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