Pressões extrativistas e resistências populares geram novos debates políticos
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- Eduardo Gudynas
- 23/12/2011
A América do Sul fecha o ano com bons indicadores econômicos em quase todos os países, prosseguindo num ciclo de crescimento promovido pelas exportações de matérias-primas. Enquanto a influência econômica e comercial dos países europeus e dos EUA se reduz, a região aumenta seus vínculos com a China e outras nações asiáticas. Paralelamente, esta expansão econômica permite manter diversos programas de assistência social, reduzindo a pobreza.
Extrativismo e resistências cidadãs
Este contexto econômico favorável se deve em parte a fortes fluxos de exportações de matérias-primas, que por sua vez se baseiam em novos empreendimentos extrativistas em mineração, petróleo e monocultivos, como a soja. Isso gera diversas reações políticas, nas quais muitos países sul-americanos estão imersos em situações muito diferentes da do Brasil.
Com efeito, em vários países sul-americanos há uma crescente resistência cidadã frente aos projetos extrativistas, especialmente de mineração e petróleo, mas também incluindo os monocultivos, como da soja, e suas obras associadas, como as estradas. Não é unicamente um conjunto de protestos contra obras específicas, mas, sim, o fato de que se elevou o debate sobre toda a estratégia de desenvolvimento nacional.
As resistências mais fortes e extensas estão presentes no Equador, Bolívia, Peru e, em menor escala, Argentina, Paraguai e Uruguai. Neste primeiro grupo, existem muitos conflitos locais, devido a impactos sociais, econômicos e ambientais, a partir de onde se organizam campanhas e redes cidadãs de amplitude nacional, instalando um debate político também de proporções nacionais.
Um caso dramático ocorreu na Bolívia, com uma marcha dos indígenas das terras tropicais até a capital, La Paz, para se opor à proposta de construir uma estrada que atravessaria um de seus territórios (conhecido pela sigla Tipnis). O governo de Evo Morales rechaçou as demandas indígenas, buscou desarticular o protesto, incentivou manifestações contrárias e até lançou a polícia numa violenta repressão. Mas nada disso foi efetivo; a marcha indígena se transformou em assunto nacional, conseguiu o apoio de diversos atores políticos e finalmente o governo Morales teve de cancelar a construção da estrada.
No segundo grupo de países, o debate nacional é mais limitado e acontece em maior medida nos espaços dos partidos políticos. Um bom exemplo é o Uruguai, onde o governo de Jose “Pepe” Mujica propõe iniciar a mega-mineração de ferro a céu aberto. Isso desencadeou o protesto de um conjunto heterogêneo de ambientalistas, militantes sociais, agricultores e pecuaristas, que terminou em discussões no Congresso. O governo foi obrigado a começar uma coordenação com todos os partidos para desenhar uma nova estratégia mineradora.
Sob um contexto muito diferente, também existe um crescente debate sobre o extrativismo na Colômbia. O novo governo de Juan Manuel Santos lançou um programa de “locomotivas” do desenvolvimento, no qual uma delas seria a “locomotiva mineira”. Os protestos locais estão se articulando de pouco em pouco, em torno de um questionamento à idéia de “locomotivas do desenvolvimento”.
Nesses dois conjuntos de países a intensidade dos debates é diferente, mas em todos os casos se chega a uma discussão sobre as estratégias de desenvolvimento que põem em questão a validade dos empreendimentos extrativistas. Essa é uma situação qualitativamente diferente do observado no Brasil, ao menos por duas razões. Em primeiro lugar, os protestos cidadãos contra os projetos mineradores ou de estradas seguem sendo especialmente locais ou estaduais, e sua difusão para a escala nacional é limitada. Em segundo lugar, o debate brasileiro sobre o extrativismo está focado, por exemplo, em como tributar os recursos e repartir os benefícios. Por outro lado, na Bolívia, Equador e Peru, existem campanhas focadas em suspender o extrativismo; considera-se que seus impactos são tão altos que, por mais dinheiro que se ganhe, não é possível aceitar tal estratégia.
Ilustrando o assunto com o caso do petróleo, no Brasil o debate nacional, com participação de muitas ONGs, está concentrado em como organizar a exploração do pré-sal e controlar a renda obtida. Mas, em alguns países andinos, existe um segmento importante da população que defende a proibição da exploração petrolífera.
Peru: uma guinada sob a sombra do Brasil
A mobilização cidadã contra a mineração alcançou níveis críticos no Peru nos últimos meses. O novo presidente, Ollanta Humala, que se identifica com o conjunto de governos da nova esquerda, triunfou nas últimas eleições prometendo deter o avanço da mineração depredadora. Mesmo assim, nos últimos meses, sua administração não conseguiu melhorar adequadamente os conflitos sócio-ambientais causados pela mineração e rapidamente começou a mudar seu discurso, passando a defender a mega-mineração.
O problema mais agudo se centrou no projeto de Conga, na região de Cajamarca. A oposição dos grupos locais e do governo estadual aumentou rapidamente, até terminar com uma greve generalizada. A resposta governamental foi enviar o exército e a polícia à região e amedrontar os líderes cidadãos. Isso demonstra a intensidade dos conflitos em andamento.
O debate peruano mostra outros aspectos muito interessantes, já que boa parte das organizações cidadãs considera que o governo de Humala se “lulizou”, de modo a copiar o modus operandi de Lula da Silva. Isso, por sua vez, se vê reforçado porque alguns antigos assessores de campanha de Lula agora trabalham como assessores da presidência peruana.
Tal tipo de preocupação se repete em outros países, nos quais se observa que o governo do Brasil é, em alguns casos, um aliado importante da expansão extrativista e, em outros casos, a financia diretamente. Por exemplo, a polêmica estrada proposta na Bolívia seria financiada pelo BNDES e construída por uma empreiteira brasileira.
O papel do Brasil começa a ser visto com preocupação. Além das declarações de imprensa a favor da integração, o governo brasileiro mantém uma política comercial restritiva para defender sua indústria, o que impede de concretizar suas obrigações dentro do Mercosul. Em nível continental, deixou de coordenar posições com seus vizinhos sul-americanos nos fóruns globais. O exemplo mais recente foi no encontro da mudança climática, em Durban, onde a delegação brasileira não coordenou suas posições nem com o Mercosul nem com a Unasul, deixou de atuar com o Grupo Latino-Americano (GRULAC) e até se separou de boa parte dos países em desenvolvimento, para atuar em parceria com a China.
Diferentes reordenamentos políticos
Outro tipo de mobilização cidadã, de natureza muito diferente, se observa no Chile. Lá, ocorreu um despertar entre os jovens, reclamando uma reforma da educação pública que atualmente tem uma estrutura dinâmica e inspiração neoliberal. A energia estudantil é vista com simpatia por boa parte da sociedade, serviu para pluralizar o espectro partidário (contribuindo para tirar de seu ostracismo o Partido Comunista chileno) e forçou uma negociação com o governo conservador de Sebastián Piñera.
De modo similar, a alta mobilização cidadã dos países andinos também impacta nos grupos políticos. Por exemplo, no Equador, constituiu-se uma coordenadoria de esquerda independente, para além do grupo governante (que engloba a Aliança País e alguns parceiros). Essa coordenadoria inclui o partido indígena Pachakutik, entidades cidadãs independentes (como Montecristi Vive) e dissidentes do governo de Rafael Correa.
Tanto na Bolívia como no Peru, as organizações indígenas se separaram e se distanciaram dos governos. O último caso acaba de ocorrer no Peru, onde a confederação dos povos amazônicos emitiu um comunicado anunciando sua ruptura com o governo Humala. A situação boliviana também está ficando complexa já que o chamado “Pacto de Unidade” entre os diferentes movimentos sociais que sustentam o governo Evo Morales sofreu uma fratura com a saída das organizações indígenas (permanecem as federações de camponeses e colonos).
No entanto, tal processo é limitado na Argentina. Nas últimas eleições nacionais, passou ao segundo lugar uma coalizão comandada pelos socialistas liderados por Hermes Binner (com 17% dos votos). De toda forma, Cristina Fernández de Kirchner obteve uma vitória retumbante (54% dos votos).
A diversificação do progressismo
Como balanço final, parece observar-se que o progressismo sul-americano está se diversificando ainda mais. Enquanto Hugo Chávez acentua suas estratégias heterodoxas, e às vezes excêntricas, no Equador parece ter sido bloqueado o programa progressista, apelando-se agora a medidas econômicas e políticas crescentemente conservadoras.
O governo de Jose Mujica, no Uruguai, se aproxima mais ao da Argentina, enquanto Fernando Lugo, no Paraguai, segue paralisado em seu plano de reformas, por carecer de uma base de legisladores aliados no Congresso.
A mudança mais surpreendente, pela rapidez, é de Ollanta Humala no Peru. Em seu quarto mês de governo, começou uma virada ao centro-direita, sob o objetivo de assegurar os investimentos e a ordem pública. Com este fim, colocou um ex-militar como chefe do Conselho de Ministros; os militantes de esquerda estão renunciando a seus cargos no governo e o apoio no congresso agora está nas mãos de grupos de direita.
Em quase todos os casos, com distintas intensidades, está em marcha um debate sobre as estratégias do desenvolvimento, o aprofundamento da democracia e os mecanismos realmente efetivos de participação cidadã. Também existem sombras que se repetem em vários países, como, por exemplo, as intenções presidenciais de controlar e canalizar o poder judiciário. Porém, em todos os casos, mantêm-se diferentes mobilizações cidadãs que estão obrigando todos a seguir pensando quais são os objetivos, e as mediações, da mudança política e social no continente.
Eduardo Gudynas é analista de informação no D3E (Desenvolvimento, Economia, Ecologia e Eqüidade), centro de investigações dos assuntos latino-americanos sediado em Montevidéu.
Traduzido por Gabriel Brito, jornalista do Correio da Cidadania.