Correio da Cidadania

Pressões extrativistas e resistências populares geram novos debates políticos

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A Amé­rica do Sul fecha o ano com bons in­di­ca­dores econô­micos em quase todos os países, pros­se­guindo num ciclo de cres­ci­mento pro­mo­vido pelas ex­por­ta­ções de ma­té­rias-primas. En­quanto a in­fluência econô­mica e co­mer­cial dos países eu­ro­peus e dos EUA se reduz, a re­gião au­menta seus vín­culos com a China e ou­tras na­ções asiá­ticas. Pa­ra­le­la­mente, esta ex­pansão econô­mica per­mite manter di­versos pro­gramas de as­sis­tência so­cial, re­du­zindo a po­breza.

Ex­tra­ti­vismo e re­sis­tên­cias ci­dadãs

Este con­texto econô­mico fa­vo­rável se deve em parte a fortes fluxos de ex­por­ta­ções de ma­té­rias-primas, que por sua vez se ba­seiam em novos em­pre­en­di­mentos ex­tra­ti­vistas em mi­ne­ração, pe­tróleo e mo­no­cul­tivos, como a soja. Isso gera di­versas re­a­ções po­lí­ticas, nas quais muitos países sul-ame­ri­canos estão imersos em si­tu­a­ções muito di­fe­rentes da do Brasil.

Com efeito, em vá­rios países sul-ame­ri­canos há uma cres­cente re­sis­tência ci­dadã frente aos pro­jetos ex­tra­ti­vistas, es­pe­ci­al­mente de mi­ne­ração e pe­tróleo, mas também in­cluindo os mo­no­cul­tivos, como da soja, e suas obras as­so­ci­adas, como as es­tradas. Não é uni­ca­mente um con­junto de pro­testos contra obras es­pe­cí­ficas, mas, sim, o fato de que se elevou o de­bate sobre toda a es­tra­tégia de de­sen­vol­vi­mento na­ci­onal.

As re­sis­tên­cias mais fortes e ex­tensas estão pre­sentes no Equador, Bo­lívia, Peru e, em menor es­cala, Ar­gen­tina, Pa­ra­guai e Uru­guai. Neste pri­meiro grupo, existem muitos con­flitos lo­cais, de­vido a im­pactos so­ciais, econô­micos e am­bi­en­tais, a partir de onde se or­ga­nizam cam­pa­nhas e redes ci­dadãs de am­pli­tude na­ci­onal, ins­ta­lando um de­bate po­lí­tico também de pro­por­ções na­ci­o­nais.

Um caso dra­má­tico ocorreu na Bo­lívia, com uma marcha dos in­dí­genas das terras tro­pi­cais até a ca­pital, La Paz, para se opor à pro­posta de cons­truir uma es­trada que atra­ves­saria um de seus ter­ri­tó­rios (co­nhe­cido pela sigla Tipnis). O go­verno de Evo Mo­rales re­chaçou as de­mandas in­dí­genas, buscou de­sar­ti­cular o pro­testo, in­cen­tivou ma­ni­fes­ta­ções con­trá­rias e até lançou a po­lícia numa vi­o­lenta re­pressão. Mas nada disso foi efe­tivo; a marcha in­dí­gena se trans­formou em as­sunto na­ci­onal, con­se­guiu o apoio de di­versos atores po­lí­ticos e fi­nal­mente o go­verno Mo­rales teve de can­celar a cons­trução da es­trada.

No se­gundo grupo de países, o de­bate na­ci­onal é mais li­mi­tado e acon­tece em maior me­dida nos es­paços dos par­tidos po­lí­ticos. Um bom exemplo é o Uru­guai, onde o go­verno de Jose “Pepe” Mu­jica propõe ini­ciar a mega-mi­ne­ração de ferro a céu aberto. Isso de­sen­ca­deou o pro­testo de um con­junto he­te­ro­gêneo de am­bi­en­ta­listas, mi­li­tantes so­ciais, agri­cul­tores e pe­cu­a­ristas, que ter­minou em dis­cus­sões no Con­gresso. O go­verno foi obri­gado a co­meçar uma co­or­de­nação com todos os par­tidos para de­se­nhar uma nova es­tra­tégia mi­ne­ra­dora.

Sob um con­texto muito di­fe­rente, também existe um cres­cente de­bate sobre o ex­tra­ti­vismo na Colômbia. O novo go­verno de Juan Ma­nuel Santos lançou um pro­grama de “lo­co­mo­tivas” do de­sen­vol­vi­mento, no qual uma delas seria a “lo­co­mo­tiva mi­neira”. Os pro­testos lo­cais estão se ar­ti­cu­lando de pouco em pouco, em torno de um ques­ti­o­na­mento à idéia de “lo­co­mo­tivas do de­sen­vol­vi­mento”.

Nesses dois con­juntos de países a in­ten­si­dade dos de­bates é di­fe­rente, mas em todos os casos se chega a uma dis­cussão sobre as es­tra­té­gias de de­sen­vol­vi­mento que põem em questão a va­li­dade dos em­pre­en­di­mentos ex­tra­ti­vistas. Essa é uma si­tu­ação qua­li­ta­ti­va­mente di­fe­rente do ob­ser­vado no Brasil, ao menos por duas ra­zões. Em pri­meiro lugar, os pro­testos ci­da­dãos contra os pro­jetos mi­ne­ra­dores ou de es­tradas se­guem sendo es­pe­ci­al­mente lo­cais ou es­ta­duais, e sua di­fusão para a es­cala na­ci­onal é li­mi­tada. Em se­gundo lugar, o de­bate bra­si­leiro sobre o ex­tra­ti­vismo está fo­cado, por exemplo, em como tri­butar os re­cursos e re­partir os be­ne­fí­cios. Por outro lado, na Bo­lívia, Equador e Peru, existem cam­pa­nhas fo­cadas em sus­pender o ex­tra­ti­vismo; con­si­dera-se que seus im­pactos são tão altos que, por mais di­nheiro que se ganhe, não é pos­sível aceitar tal es­tra­tégia.

Ilus­trando o as­sunto com o caso do pe­tróleo, no Brasil o de­bate na­ci­onal, com par­ti­ci­pação de muitas ONGs, está con­cen­trado em como or­ga­nizar a ex­plo­ração do pré-sal e con­trolar a renda ob­tida. Mas, em al­guns países an­dinos, existe um seg­mento im­por­tante da po­pu­lação que de­fende a proi­bição da ex­plo­ração pe­tro­lí­fera.

Peru: uma gui­nada sob a sombra do Brasil

A mo­bi­li­zação ci­dadã contra a mi­ne­ração al­cançou ní­veis crí­ticos no Peru nos úl­timos meses. O novo pre­si­dente, Ol­lanta Hu­mala, que se iden­ti­fica com o con­junto de go­vernos da nova es­querda, triunfou nas úl­timas elei­ções pro­me­tendo deter o avanço da mi­ne­ração de­pre­da­dora. Mesmo assim, nos úl­timos meses, sua ad­mi­nis­tração não con­se­guiu me­lhorar ade­qua­da­mente os con­flitos sócio-am­bi­en­tais cau­sados pela mi­ne­ração e ra­pi­da­mente co­meçou a mudar seu dis­curso, pas­sando a de­fender a mega-mi­ne­ração.

O pro­blema mais agudo se cen­trou no pro­jeto de Conga, na re­gião de Ca­ja­marca. A opo­sição dos grupos lo­cais e do go­verno es­ta­dual au­mentou ra­pi­da­mente, até ter­minar com uma greve ge­ne­ra­li­zada. A res­posta go­ver­na­mental foi en­viar o exér­cito e a po­lícia à re­gião e ame­drontar os lí­deres ci­da­dãos. Isso de­monstra a in­ten­si­dade dos con­flitos em an­da­mento.

O de­bate pe­ruano mostra ou­tros as­pectos muito in­te­res­santes, já que boa parte das or­ga­ni­za­ções ci­dadãs con­si­dera que o go­verno de Hu­mala se “lu­lizou”, de modo a co­piar o modus ope­randi de Lula da Silva. Isso, por sua vez, se vê re­for­çado porque al­guns an­tigos as­ses­sores de cam­panha de Lula agora tra­ba­lham como as­ses­sores da pre­si­dência pe­ruana.

Tal tipo de pre­o­cu­pação se re­pete em ou­tros países, nos quais se ob­serva que o go­verno do Brasil é, em al­guns casos, um aliado im­por­tante da ex­pansão ex­tra­ti­vista e, em ou­tros casos, a fi­nancia di­re­ta­mente. Por exemplo, a po­lê­mica es­trada pro­posta na Bo­lívia seria fi­nan­ciada pelo BNDES e cons­truída por uma em­prei­teira bra­si­leira.

O papel do Brasil co­meça a ser visto com pre­o­cu­pação. Além das de­cla­ra­ções de im­prensa a favor da in­te­gração, o go­verno bra­si­leiro mantém uma po­lí­tica co­mer­cial res­tri­tiva para de­fender sua in­dús­tria, o que im­pede de con­cre­tizar suas obri­ga­ções dentro do Mer­cosul. Em nível con­ti­nental, deixou de co­or­denar po­si­ções com seus vi­zi­nhos sul-ame­ri­canos nos fó­runs glo­bais. O exemplo mais re­cente foi no en­contro da mu­dança cli­má­tica, em Durban, onde a de­le­gação bra­si­leira não co­or­denou suas po­si­ções nem com o Mer­cosul nem com a Unasul, deixou de atuar com o Grupo La­tino-Ame­ri­cano (GRULAC) e até se se­parou de boa parte dos países em de­sen­vol­vi­mento, para atuar em par­ceria com a China.

Di­fe­rentes re­or­de­na­mentos po­lí­ticos

Outro tipo de mo­bi­li­zação ci­dadã, de na­tu­reza muito di­fe­rente, se ob­serva no Chile. Lá, ocorreu um des­pertar entre os jo­vens, re­cla­mando uma re­forma da edu­cação pú­blica que atu­al­mente tem uma es­tru­tura di­nâ­mica e ins­pi­ração ne­o­li­beral. A energia es­tu­dantil é vista com sim­patia por boa parte da so­ci­e­dade, serviu para plu­ra­lizar o es­pectro par­ti­dário (con­tri­buindo para tirar de seu os­tra­cismo o Par­tido Co­mu­nista chi­leno) e forçou uma ne­go­ci­ação com o go­verno con­ser­vador de Se­bas­tián Piñera.

De modo si­milar, a alta mo­bi­li­zação ci­dadã dos países an­dinos também im­pacta nos grupos po­lí­ticos. Por exemplo, no Equador, cons­ti­tuiu-se uma co­or­de­na­doria de es­querda in­de­pen­dente, para além do grupo go­ver­nante (que en­globa a Ali­ança País e al­guns par­ceiros). Essa co­or­de­na­doria in­clui o par­tido in­dí­gena Pa­cha­kutik, en­ti­dades ci­dadãs in­de­pen­dentes (como Mon­te­cristi Vive) e dis­si­dentes do go­verno de Ra­fael Correa.

Tanto na Bo­lívia como no Peru, as or­ga­ni­za­ções in­dí­genas se se­pa­raram e se dis­tan­ci­aram dos go­vernos. O úl­timo caso acaba de ocorrer no Peru, onde a con­fe­de­ração dos povos amazô­nicos emitiu um co­mu­ni­cado anun­ci­ando sua rup­tura com o go­verno Hu­mala. A si­tu­ação bo­li­viana também está fi­cando com­plexa já que o cha­mado “Pacto de Uni­dade” entre os di­fe­rentes mo­vi­mentos so­ciais que sus­tentam o go­verno Evo Mo­rales so­freu uma fra­tura com a saída das or­ga­ni­za­ções in­dí­genas (per­ma­necem as fe­de­ra­ções de cam­po­neses e co­lonos).

No en­tanto, tal pro­cesso é li­mi­tado na Ar­gen­tina. Nas úl­timas elei­ções na­ci­o­nais, passou ao se­gundo lugar uma co­a­lizão co­man­dada pelos so­ci­a­listas li­de­rados por Hermes Binner (com 17% dos votos). De toda forma, Cris­tina Fer­nández de Kir­chner ob­teve uma vi­tória re­tum­bante (54% dos votos).

A di­ver­si­fi­cação do pro­gres­sismo

Como ba­lanço final, pa­rece ob­servar-se que o pro­gres­sismo sul-ame­ri­cano está se di­ver­si­fi­cando ainda mais. En­quanto Hugo Chávez acentua suas es­tra­té­gias he­te­ro­doxas, e às vezes ex­cên­tricas, no Equador pa­rece ter sido blo­queado o pro­grama pro­gres­sista, ape­lando-se agora a me­didas econô­micas e po­lí­ticas cres­cen­te­mente con­ser­va­doras.

O go­verno de Jose Mu­jica, no Uru­guai, se apro­xima mais ao da Ar­gen­tina, en­quanto Fer­nando Lugo, no Pa­ra­guai, segue pa­ra­li­sado em seu plano de re­formas, por ca­recer de uma base de le­gis­la­dores ali­ados no Con­gresso.

A mu­dança mais sur­pre­en­dente, pela ra­pidez, é de Ol­lanta Hu­mala no Peru. Em seu quarto mês de go­verno, co­meçou uma vi­rada ao centro-di­reita, sob o ob­je­tivo de as­se­gurar os in­ves­ti­mentos e a ordem pú­blica. Com este fim, co­locou um ex-mi­litar como chefe do Con­selho de Mi­nis­tros; os mi­li­tantes de es­querda estão re­nun­ci­ando a seus cargos no go­verno e o apoio no con­gresso agora está nas mãos de grupos de di­reita.

Em quase todos os casos, com dis­tintas in­ten­si­dades, está em marcha um de­bate sobre as es­tra­té­gias do de­sen­vol­vi­mento, o apro­fun­da­mento da de­mo­cracia e os me­ca­nismos re­al­mente efe­tivos de par­ti­ci­pação ci­dadã. Também existem som­bras que se re­petem em vá­rios países, como, por exemplo, as in­ten­ções pre­si­den­ciais de con­trolar e ca­na­lizar o poder ju­di­ciário. Porém, em todos os casos, mantêm-se di­fe­rentes mo­bi­li­za­ções ci­dadãs que estão obri­gando todos a se­guir pen­sando quais são os ob­je­tivos, e as me­di­a­ções, da mu­dança po­lí­tica e so­cial no con­ti­nente.

Edu­ardo Gudynas é ana­lista de in­for­mação no D3E (De­sen­vol­vi­mento, Eco­nomia, Eco­logia e Eqüidade), centro de in­ves­ti­ga­ções dos as­suntos la­tino-ame­ri­canos se­diado em Mon­te­vidéu.

Tra­du­zido por Ga­briel Brito, jor­na­lista do Cor­reio da Ci­da­dania.

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