Correio da Cidadania

Algumas coisas estão fora dos trilhos na educação superior

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Falta de preparo das escolas para a educação a distância aumenta  desigualdades
O en­sino su­pe­rior bra­si­leiro tem uma série de ca­rac­te­rís­ticas bas­tante es­tra­nhas. Ve­jamos ini­ci­al­mente al­gumas normas le­gais.

Uma das normas diz res­peito a exi­gên­cias de pes­soas ti­tu­ladas no corpo do­cente de uni­ver­si­dades. Se­gundo a Lei de Di­re­trizes e Bases da Edu­cação Na­ci­onal, a LDB, de 1996, para que uma ins­ti­tuição possa ser uma uni­ver­si­dade e gozar da au­to­nomia aca­dê­mica pre­vista para esse tipo de ins­ti­tuição, ela pre­cisa ter, pelo menos, “um terço do corpo do­cente com ti­tu­lação aca­dê­mica de mes­trado ou dou­to­rado”. Ora, para os fins le­gais, al­guém que tenha o dou­to­rado, sem ter ob­tido an­te­ri­or­mente o mes­trado, terá todos os di­reitos cor­res­pon­dentes a este úl­timo tí­tulo, como, por exemplo, fazer um con­curso pú­blico para um cargo de mestre. Cabe, por­tanto, a per­gunta: o que a pa­lavra dou­to­rado está fa­zendo na lei? Nada: co­locá-la ou não em nada al­te­raria as exi­gên­cias le­gais. Talvez sirva apernas para en­feitar a lei.

De­vemos notar também que essa re­dação faz re­fe­rência a “um terço do corpo do­cente”, não das aulas ou das ati­vi­dades de pes­quisa. Essa terça parte de pes­soas com ti­tu­lação mí­nima de “mes­trado ou dou­to­rado”, de fato, apenas mes­trado, pode ser res­pon­sável por uma pro­porção bem menor do que um terço das aulas ou das ati­vi­dades de pes­quisa.

Outra exi­gência com re­dação bas­tante es­tranha é a de que uma uni­ver­si­dade deve ter “um terço do corpo do­cente em re­gime de tempo in­te­gral”. Pela lei, essa terça parte do corpo do­cente pode ser for­mada apenas por pes­soas sem mes­trado ou dou­to­rado. Além disso, a carga ho­rária de aulas pode ser bem in­fe­rior a um terço do total de aulas da ins­ti­tuição. O que aquela “exi­gência” exige?

Esses são al­guns exem­plos das muitas “pontas soltas” da le­gis­lação edu­ca­ci­onal bra­si­leira, no caso, a LDB de 1996. Elas não ocorrem por des­cuido, pois uma lei, antes de vo­tada, é lida por todos os grupos in­te­res­sados e suas con­sequên­cias são de­ta­lha­da­mente ava­li­adas. Se estão lá é porque al­guém as co­locou e, cer­ta­mente, não sur­giram das ins­ti­tui­ções pú­blicas, de seus do­centes e as­so­ci­a­ções; elas estão cla­ra­mente li­gadas a in­te­resses do setor pri­vado.

O caos em nú­meros

Não é sur­pre­en­dente, por­tanto, a de­sor­ga­ni­zação do sis­tema quanto aos in­di­ca­dores quan­ti­ta­tivos. A enorme to­le­rância para a ob­tenção de au­to­ri­zação para a cri­ação de cursos e ins­ti­tui­ções pri­vadas em nível su­pe­rior leva a si­tu­a­ções es­tra­nhas, como a re­lação entre nú­mero de vagas de in­gresso no en­sino su­pe­rior e o nú­mero de con­clu­sões do en­sino médio. A cada ano, cerca de dois mi­lhões de pes­soas con­clui o en­sino médio no Brasil, en­quanto são ofe­re­cidas uma quan­ti­dade de vagas de in­gresso em cursos su­pe­ri­ores na casa dos vinte mi­lhões, entre pre­sen­ciais e a dis­tância. A enorme mai­oria dessas vagas está em ins­ti­tui­ções pri­vadas.

Mesmo se con­si­de­rarmos apenas a quan­ti­dade de vagas de in­gresso ofe­re­cidas em cursos pre­sen­ciais, vemos que elas são da ordem de seis mi­lhões, nú­mero entre duas e três vezes maior do que o de con­cluintes no en­sino médio.

Claro que não há vagas de fato. O que existe são ins­ti­tui­ções pri­vadas que têm di­reito de ofe­recer vagas de in­gresso sa­bendo que não serão ocu­padas; é uma re­serva es­tra­té­gica dis­po­nível. Não existem vagas oci­osas, ideia já usada no país para jus­ti­ficar certas leis e certos pro­ce­di­mentos.

Esse nú­mero de vagas ofe­re­cidas não apenas não tem re­lação com po­ten­cial de­manda como são mal dis­tri­buídas pelas re­giões e pro­fis­sões. Não se ofe­recem vagas nas pro­fis­sões que mai­ores con­tri­bui­ções po­de­riam dar ao de­sen­vol­vi­mento cul­tural e so­cial do país ou a seu cres­ci­mento econô­mico; elas são ofe­re­cidas apenas em função da exis­tência de cli­en­tela e pelo re­torno fi­nan­ceiro que disso pode advir.

O de­sen­contro dos nú­meros con­tinua. A quan­ti­dade de in­gres­santes no en­sino su­pe­rior a cada ano é da ordem de cinco mi­lhões, dois terços deles em cursos a dis­tância. Esse nú­mero é mais do que o dobro do nú­mero de con­cluintes do en­sino médio. Essa des­pro­porção in­dica que as pes­soas in­gressam, em média, duas ou três vezes em um curso su­pe­rior, muitas delas sem ne­nhum com­pro­misso com o pro­cesso de apren­di­zado. Isso dá origem a outra face ne­ga­tiva do sis­tema, afe­tando o en­ten­di­mento, por parte da po­pu­lação, e em es­pe­cial dos es­tu­dantes, do que deve ser um curso su­pe­rior.

Os con­cluintes do en­sino su­pe­rior a cada ano são da ordem de 800 mil nos cursos pre­sen­ciais e perto de 500 mil nos cursos a dis­tância. Se com­pa­rado com o nú­mero de in­gres­santes, de cinco mi­lhões, po­de­ríamos supor que a taxa de evasão seja da ordem de 75%. En­tre­tanto, isso não é cor­reto, pois muitos “in­gressos” podem não ir além de um papel pre­en­chido e do pa­ga­mento de uma taxa ou al­gumas men­sa­li­dades.

Essa si­tu­ação é fruto da enorme taxa de pri­va­ti­zação do en­sino su­pe­rior bra­si­leiro, uma das mai­ores do mundo, com­bi­nada com as pontas soltas da le­gis­lação (apenas para com­pa­ração, nos EUA, três quartos dos es­tu­dantes do en­sino su­pe­rior estão em ins­ti­tui­ções pú­blicas; no Brasil, é o in­verso: três quartos estão em ins­ti­tui­ções pri­vadas). Quando exa­mi­namos apenas o que ocorre com as vagas, in­gres­sante e con­cluintes em ins­ti­tui­ções pú­blicas, a si­tu­ação é bem mais re­gular. As des­pro­por­ções nu­mé­ricas apon­tadas são pro­vo­cadas ba­si­ca­mente pelo setor pri­vado.

Con­sequên­cias

As con­sequên­cias dessa si­tu­ação são muito grandes e ne­ga­tivas: jo­vens perdem tempo (e di­nheiro) se ma­tri­cu­lando em cursos ir­re­le­vantes e que não le­varão adi­ante; go­vernos, em todos os ní­veis, des­per­diçam di­nheiro sub­si­di­ando muitos desses cursos na forma de re­cursos des­ti­nados di­re­ta­mente aos in­te­resses do setor pri­vado, como isen­ções de im­postos e de con­tri­bui­ções so­ciais, na forma de aba­ti­mento de parte das des­pesas do im­posto de renda de pes­soas fí­sicas, entre ou­tras.

Não po­demos con­viver com um sis­tema tão sem rumo. Isso pre­cisa ser re­visto e um ca­minho que leve a um sis­tema de en­sino or­ga­ni­zado e efi­ci­ente deve ser de­li­neado. A ex­pansão de setor pú­blico no en­sino su­pe­rior, res­pei­tando as ne­ces­si­dades e pos­si­bi­li­dades re­gi­o­nais e das di­fe­rentes pro­fis­sões, é uma com­po­nente es­sen­cial desse pro­cesso de re­or­ga­ni­zação do sis­tema de en­sino su­pe­rior no país. Se o setor pú­blico do­brar suas ma­trí­culas e o setor pri­vado for re­du­zido em igual quan­ti­dade, te­ríamos uma taxa de pri­va­ti­zação igual àquela dos EUA, bem me­lhor do que a si­tu­ação atual, mas ainda dis­tante da re­a­li­dade nos países com me­lhores sis­temas edu­ca­ci­o­nais.

Uma re­gu­lação do setor pri­vado que leve em conta os in­te­resses da so­ci­e­dade – e não dos em­pre­sá­rios do setor – também é es­sen­cial. Todos os sub­sí­dios go­ver­na­men­tais, que de­ve­riam, como regra, ser tran­si­tó­rios, pre­cisam ser ana­li­sados, re­ser­vando-os para cursos que re­al­mente con­tri­buam para o de­sen­vol­vi­mento do país. Não po­demos deixar que jo­vens percam tempo e di­nheiro em ati­vi­dades de re­torno nulo ou até ne­ga­tivo.

Ota­viano He­lene é pro­fessor do Ins­ti­tuto de Fí­sica da USP.
Fonte: Jornal da USP.

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